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A RTP Memória, um dos poucos canais televisivos com alguns conteúdos de qualidade, passou na tarde soalheira deste seco Outono nacional (13/11/2017), a obra-prima cinematográfica de Orson Welles, “Citizen Kane” -- título mal traduzido em Portugal para “O Mundo a Seus Pés”. Refira-se, desde já, que o filme em apreço tem sido visto, por maioria de razão de quem sobre o mesmo se tem debruçado, apreciado (analisado) e tecido considerações, como o exemplo acabado, paradigmático, de um bem orquestrado exercício ritualizado de práticas jornalísticas onde se confrontam o poder e o contra-poder, e onde se confundem a objectividade e a subjectividade, o que coalha a credibilidade dos factos a noticiar.
Charles
Foster Kane – “Citizen Kane”, o protagonista, preocupa-se com
os deserdados da sorte, logo é profundamente humano com as
maiorias desfavorecidas (decorre a depressão económica
dos anos 30 – séc. XX), mas desafia de forma caprichosa,
discricionária e irreverente os jornais seus concorrentes,
dirigindo a seu bel-prazer as publicações pelas quais
responde. Mas, quem detém, afinal, a verdade?! Quem é
capaz de ler a realidade sem confundir o ser e a aparência? A
leitura objectiva de qualquer facto está sempre carregada de
uma certa subjectividade associada à lente sócio-cultural
e económica e ao contexto ideológico... por muito que
se tente ser objectivo.
Curiosamente,
foi nesta época da história do jornalismo, segundo Jay
Rosen (1956 - ....),
que se lavraram acordos e cláusulas para que aos jornalistas
fosse garantida liberdade de acção e independência,
na óptica da objectividade factual. No entanto, quem financia
os media
não está interessado em perder dinheiro e, rapidamente,
a tónica da objectividade é colocada na transformação
das notícias em “instrumentos de marketing
de qualquer espécie”
(
Traquina & Mesquita, 2003: p. 76).
Voltando
ainda ao filme “Citizen Kane”, importa agora chamar a atenção
para o enigma que perpassa toda a acção, e que se nos
afigura como uma fixação regressiva primária que
amarra o protagonista e o condiciona (psicodinâmica
inconsciente) do princípio ao fim. Este mistério é
regularmente evocado por Kane, através do
referente-significante-signo-sinal - “Rosebud”.
Mas é esta mesma psicodinâmica inconsciente que consegue
gerar matéria para uma narrativa multidimensional e
polissémica, onde se congregam referências várias
– magnetismo, “glamour”, poder, arbítrio, manipulação,
prepotência, e identificação projectiva –
através da fantasia omnipotente operada pela voz
(autoritarismo de Kane, que a mais recente mulher-mãe [Susan
Alexander] tolera cada vez menos): ela tinha de ser, à força,
a sublimatória cantora de ópera. Como amante, ele era
um desastrado, embora fosse socialmente civilizado e cívico;
como jornalista era representativo e ditador; como pessoa, era
incapaz de crescer e de se transformar emocionalmente.
Por
último, torna-se fulcral sublinhar as cenas iniciais do filme
(e a última), pois constituem, quanto a nós, a chave de
toda a história e a explicação do enigma.
Charles Foster Kane é filho de uma família pobre e
desestruturada: a mãe (fria, calculista e seca) é quem
manda em casa; o pai (frouxo, diminuído e patético) é
um pobre diabo, e o filho, encarcerado nesta triangulação
relacional edipiana nefasta, refugia-se na neve (pureza) exterior e
evade-se em lúdicas aventuras com o seu querido trenó.
A família, inopinadamente, sendo objecto de uma tão
imensa quanto inesperada fortuna, obriga o menino a abandonar o trenó
e a viajar da Inglaterra para a América, com um tutor que lhe
administrará a riqueza até à maioridade. Na
última cena do filme, depois de Kane ter sido abandonado pela
única mulher que julgou ter amado (reminiscência da
mãe), acaba por morrer (pela segunda e definitiva vez), sendo
queimados os seus pertences... e o trenó, onde se pode ler,
pela primeira e última vez, a palavra “ROSEBUD”...
Eugene
O`Neall (1888 – 1953) escreveu: “Não existe presente nem
futuro; só o passado se repete nas nossas vidas, de forma
insuportável, vezes sem conta”.
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