quarta-feira, 22 de novembro de 2017

A PSICODINÂMICA DO "CITIZEN KANE"





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          A RTP Memória, um dos poucos canais televisivos com alguns conteúdos de qualidade, passou na tarde soalheira deste seco Outono nacional (13/11/2017), a obra-prima cinematográfica de Orson Welles, “Citizen Kane” -- título mal traduzido em Portugal para “O Mundo a Seus Pés”. Refira-se, desde já, que o filme em apreço tem sido visto, por maioria de razão de quem sobre o mesmo se tem debruçado, apreciado (analisado) e tecido considerações, como o exemplo acabado, paradigmático, de um bem orquestrado exercício ritualizado de práticas jornalísticas onde se confrontam o poder e o contra-poder, e onde se confundem a objectividade e a subjectividade, o que coalha a credibilidade dos factos a noticiar.

    Charles Foster Kane – “Citizen Kane”, o protagonista, preocupa-se com os deserdados da sorte, logo é profundamente humano com as maiorias desfavorecidas (decorre a depressão económica dos anos 30 – séc. XX), mas desafia de forma caprichosa, discricionária e irreverente os jornais seus concorrentes, dirigindo a seu bel-prazer as publicações pelas quais responde. Mas, quem detém, afinal, a verdade?! Quem é capaz de ler a realidade sem confundir o ser e a aparência? A leitura objectiva de qualquer facto está sempre carregada de uma certa subjectividade associada à lente sócio-cultural e económica e ao contexto ideológico... por muito que se tente ser objectivo.

       Curiosamente, foi nesta época da história do jornalismo, segundo Jay Rosen (1956 - ....), que se lavraram acordos e cláusulas para que aos jornalistas fosse garantida liberdade de acção e independência, na óptica da objectividade factual. No entanto, quem financia os media não está interessado em perder dinheiro e, rapidamente, a tónica da objectividade é colocada na transformação das notícias em “instrumentos de marketing de qualquer espécie” ( Traquina & Mesquita, 2003: p. 76).

    Voltando ainda ao filme “Citizen Kane”, importa agora chamar a atenção para o enigma que perpassa toda a acção, e que se nos afigura como uma fixação regressiva primária que amarra o protagonista e o condiciona (psicodinâmica inconsciente) do princípio ao fim. Este mistério é regularmente evocado por Kane, através do referente-significante-signo-sinal - “Rosebud”. Mas é esta mesma psicodinâmica inconsciente que consegue gerar matéria para uma narrativa multidimensional e polissémica, onde se congregam referências várias – magnetismo, “glamour”, poder, arbítrio, manipulação, prepotência, e identificação projectiva – através da fantasia omnipotente operada pela voz (autoritarismo de Kane, que a mais recente mulher-mãe [Susan Alexander] tolera cada vez menos): ela tinha de ser, à força, a sublimatória cantora de ópera. Como amante, ele era um desastrado, embora fosse socialmente civilizado e cívico; como jornalista era representativo e ditador; como pessoa, era incapaz de crescer e de se transformar emocionalmente.

      Por último, torna-se fulcral sublinhar as cenas iniciais do filme (e a última), pois constituem, quanto a nós, a chave de toda a história e a explicação do enigma. Charles Foster Kane é filho de uma família pobre e desestruturada: a mãe (fria, calculista e seca) é quem manda em casa; o pai (frouxo, diminuído e patético) é um pobre diabo, e o filho, encarcerado nesta triangulação relacional edipiana nefasta, refugia-se na neve (pureza) exterior e evade-se em lúdicas aventuras com o seu querido trenó. A família, inopinadamente, sendo objecto de uma tão imensa quanto inesperada fortuna, obriga o menino a abandonar o trenó e a viajar da Inglaterra para a América, com um tutor que lhe administrará a riqueza até à maioridade. Na última cena do filme, depois de Kane ter sido abandonado pela única mulher que julgou ter amado (reminiscência da mãe), acaba por morrer (pela segunda e definitiva vez), sendo queimados os seus pertences... e o trenó, onde se pode ler, pela primeira e última vez, a palavra “ROSEBUD”...

   Eugene O`Neall (1888 – 1953) escreveu: “Não existe presente nem futuro; só o passado se repete nas nossas vidas, de forma insuportável, vezes sem conta”.


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