quarta-feira, 6 de novembro de 2019

REZA UM PADRE-NOSSO, QUE ISSO PASSA!...


      

  D.ª Joana Viana Lapa levara para o casamento, entre outras heranças valiosíssimas, a famosa Quinta da Patela, cujos terrenos produziam um dos melhores vinhos do Porto de todo a região Duriense. Infelizmente, esta senhora tinha tanto de rica como de frígida e beata, sempre obstinada pelo culto religioso, a qualquer hora do dia ou da noite; não se entendia muito bem, como tinha sido capaz de conceber, gerar e parir Catarina.

     O marido, Dr. Alfredo Abrantes, para além do interminável cortejo de doentes que atendia diariamente, da parte da tarde, normalmente até às dezanove horas, alimentava, com viciante pertinácia, um outro tipo de ocupação, depois do seu imediato e rápido jantar, donde saía a correr, na companhia do motorista, em direcção às Caldas de Moledo... Ao Casino das Caldas de Moledo, melhor dizendo! Há quem afirme que não o fazia diariamente, porque viagens daquelas, tantas vezes repetidas, constituiam uma perfeita loucura, mas, fosse como fosse, os dinheiros da família e do seu próprio trabalho foram desaparecendo, rapidamente, como a chuva nas areias do deserto.

    Que podia fazer ele mais, se a mulher o rejeitava sistematicamente?! O médico sofria como um condenado, de uma permanente penitência punitiva que lhe era imposta pela companheira; de uma abstinência insuportável, que lhe coarctava o legítimo gozo dos sentidos, em normalíssimo âmbito de partilha de afectos, como é próprio dos esposos e dos amantes que se desejam e amam e, portanto, comungam coniventes e prazenteiros
das delícias cúmplices e concupiscentes, inerentes à fusão dos corpos e das almas: eram marido e mulher, eram um só corpo e uma só alma, que diabo! Mas, perante tudo isto, que fazer, então?! O clínico, enquanto homem, vivia no mais completo desespero de causa. Cada noite passada em casa, redundava em autêntico calvário de sacrifícios e renúncias... E insónias! Como se não bastasse o jejum conjugal, tinha ainda de suportar os roncos e assobios da criatura.

         Para ele, o Casino, em todo o seu luxuriante esplendor de luzes e cores, imbuídas de sensuais reflexos lúbricos, representava uma certa lascívia difusa, que ele nunca conseguiria agarrar; por isso, voltava lá, vezes sem conta. Então, e o pano das mesas de jogo? Que textura! Que macieza e suavidade! Que toque voluptuoso! Que envolvência a daquela cor verde... Como a dos olhos de Joana... E o clímax desesperadamente ansiado de uma vitória na roleta? O torvelinho demoníaco da sorte intangível!... Não seria hoje também!... “Reza um Padre-nosso, que isso passa”, costumava contrariá-lo Joana. Por que razão não conseguia o médico atingir tão desejado paroxismo, ele que era tão cidadão como os demais, tão homem como tantos outros, tão marido como os que o são, tão macho como os melhores, tão amante como os que o desejam ser?!

In "O CHÃO DOS SENTIDOS" - Manuel Bragança dos Santos - 2013

CASINO DAS CALDAS DE MOLEDO (?!) - Imagem do Google

10 comentários:

  1. Muito bom, este texto...Adorei ler. Parabéns:))

    Hoje-:-Queria sentir-te na minha realidade

    Bjos
    Votos de uma óptima noite.

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  2. Muito interessante.
    Não conhecia.
    Boa noite

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  3. Não deve ter sido muito agradável a vida do nobre Dr. Alfredo Abrantes, mas tudo passa, realmente...com Pai Nosso ou sem Pai Nosso!
    E os roncos!! Virgem Maria.
    Muito bom, Humberto, gostei de ler.
    Bjos

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  4. Não li o livro mas, pelo excelente excerto, deve mesmo valer a pena.
    Obrigado pela partilha.
    Caro Humberto, um bom fim de semana.
    Abraço.

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  5. Como sou de Gaia acho que também ia gostar muito de ler

    Beijinho no coração
    danielasilva-oficial.blogspot.pt

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  6. Meu prezado amigo Humberto,
    Que texto mais primoroso...
    Ele é santo, não esposo
    E ela é um cão experto

    Ou múmia de olho aberto,
    Pois não pode um cão raivoso
    Não querer chegar ao gozo
    E fazer vida em deserto.

    Lendo o texto, meu amigo,
    E vendo que não consigo
    Chegar perto dessa escrita,

    Eu me sinto um traste antigo
    Sem serventia e abrigo
    Do cupim que o regurgita!

    Grande abraço! Laerte.

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  7. Um retrato de um casal que, na sua intimidade, é semelhante a muitos outros casais. Primorosamente escrito.
    Uma boa semana.
    Um beijo.

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  8. Ah que bom seria que tudo passasse com um Padre Nosso...
    Excelente texto que nos leva a acreditar que o tema a que se refere é bem mais comum do que possamos imaginar!
    Um abraço.

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  9. Prezado amigo Humberto, pertenço a uma academia de letras do meu estado e agora fui guindado à diretoria e estamos dando novo corpo às letras, pela pandemia, de forma eletrônica com criação de site, revista eletrônica etc. Gostei imensamente deste curto e enorme conto RESA UM PAI-NOSSO QUE ISSO PASSA. Pediria permissão ao amigo para a publicação dele em nossas páginas. Depois catarei outras edições maravilhosas que sempre postas. O meu e-mail pessoal é laerte.silvio.tavares@gmail.com Responda-me, por favor! Laerte.

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