D.ª Joana Viana Lapa levara
para o casamento, entre outras heranças valiosíssimas, a famosa Quinta da
Patela, cujos terrenos produziam um dos melhores vinhos do Porto de todo a
região Duriense. Infelizmente, esta senhora tinha tanto de rica como de frígida
e beata, sempre obstinada pelo culto religioso, a qualquer hora do dia ou da
noite; não se entendia muito bem, como tinha sido capaz de conceber, gerar e
parir Catarina.
O
marido, Dr. Alfredo Abrantes, para além do interminável cortejo de doentes que
atendia diariamente, da parte da tarde, normalmente até às dezanove horas,
alimentava, com viciante pertinácia, um outro tipo de ocupação, depois do seu
imediato e rápido jantar, donde saía a correr, na companhia do motorista, em
direcção às Caldas de Moledo... Ao Casino das Caldas de Moledo, melhor
dizendo! Há quem afirme que não o fazia diariamente, porque viagens daquelas,
tantas vezes repetidas, constituiam uma perfeita loucura, mas, fosse como
fosse, os dinheiros da família e do seu próprio trabalho foram desaparecendo,
rapidamente, como a chuva nas areias do deserto.
Que
podia fazer ele mais, se a mulher o rejeitava sistematicamente?! O médico
sofria como um condenado, de uma permanente penitência punitiva que lhe era
imposta pela companheira; de uma abstinência insuportável, que lhe coarctava o
legítimo gozo dos sentidos, em normalíssimo âmbito de partilha de afectos, como
é próprio dos esposos e dos amantes que se desejam e amam e, portanto, comungam
coniventes e prazenteiros
das delícias cúmplices e
concupiscentes, inerentes à fusão dos corpos e das almas: eram marido e mulher,
eram um só corpo e uma só alma, que diabo! Mas, perante tudo isto, que fazer,
então?! O clínico, enquanto homem, vivia no mais completo desespero de causa.
Cada noite passada em casa, redundava em autêntico calvário de sacrifícios e
renúncias... E insónias! Como se não bastasse o jejum conjugal, tinha ainda de
suportar os roncos e assobios da criatura.
Para ele, o Casino, em todo o seu luxuriante
esplendor de luzes e cores, imbuídas de sensuais reflexos lúbricos,
representava uma certa lascívia difusa, que ele nunca conseguiria agarrar; por
isso, voltava lá, vezes sem conta. Então, e o pano das mesas de jogo? Que
textura! Que macieza e suavidade! Que toque voluptuoso! Que envolvência a
daquela cor verde... Como a dos olhos de Joana... E o clímax desesperadamente
ansiado de uma vitória na roleta? O torvelinho demoníaco da sorte
intangível!... Não seria hoje também!... “Reza um Padre-nosso, que isso passa”,
costumava contrariá-lo Joana. Por que razão não conseguia o médico atingir tão
desejado paroxismo, ele que era tão cidadão como os demais, tão homem como
tantos outros, tão marido como os que o são, tão macho como os melhores, tão
amante como os que o desejam ser?!
In "O CHÃO DOS SENTIDOS" - Manuel Bragança dos Santos - 2013
CASINO DAS CALDAS DE MOLEDO (?!) - Imagem do Google
In "O CHÃO DOS SENTIDOS" - Manuel Bragança dos Santos - 2013
CASINO DAS CALDAS DE MOLEDO (?!) - Imagem do Google
Muito bom, este texto...Adorei ler. Parabéns:))
ResponderEliminarHoje-:-Queria sentir-te na minha realidade
Bjos
Votos de uma óptima noite.
Muito interessante.
ResponderEliminarNão conhecia.
Boa noite
Não deve ter sido muito agradável a vida do nobre Dr. Alfredo Abrantes, mas tudo passa, realmente...com Pai Nosso ou sem Pai Nosso!
ResponderEliminarE os roncos!! Virgem Maria.
Muito bom, Humberto, gostei de ler.
Bjos
Não li o livro mas, pelo excelente excerto, deve mesmo valer a pena.
ResponderEliminarObrigado pela partilha.
Caro Humberto, um bom fim de semana.
Abraço.
Como sou de Gaia acho que também ia gostar muito de ler
ResponderEliminarBeijinho no coração
danielasilva-oficial.blogspot.pt
Meu prezado amigo Humberto,
ResponderEliminarQue texto mais primoroso...
Ele é santo, não esposo
E ela é um cão experto
Ou múmia de olho aberto,
Pois não pode um cão raivoso
Não querer chegar ao gozo
E fazer vida em deserto.
Lendo o texto, meu amigo,
E vendo que não consigo
Chegar perto dessa escrita,
Eu me sinto um traste antigo
Sem serventia e abrigo
Do cupim que o regurgita!
Grande abraço! Laerte.
Um retrato de um casal que, na sua intimidade, é semelhante a muitos outros casais. Primorosamente escrito.
ResponderEliminarUma boa semana.
Um beijo.
Ah que bom seria que tudo passasse com um Padre Nosso...
ResponderEliminarExcelente texto que nos leva a acreditar que o tema a que se refere é bem mais comum do que possamos imaginar!
Um abraço.
Grato por dar a conhecer o seu blog. E, desculpe a demora em cá chegar.
ResponderEliminarAbraço e obrigado.
😉
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Prezado amigo Humberto, pertenço a uma academia de letras do meu estado e agora fui guindado à diretoria e estamos dando novo corpo às letras, pela pandemia, de forma eletrônica com criação de site, revista eletrônica etc. Gostei imensamente deste curto e enorme conto RESA UM PAI-NOSSO QUE ISSO PASSA. Pediria permissão ao amigo para a publicação dele em nossas páginas. Depois catarei outras edições maravilhosas que sempre postas. O meu e-mail pessoal é laerte.silvio.tavares@gmail.com Responda-me, por favor! Laerte.
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