quarta-feira, 7 de agosto de 2013

INSTANTE DA ESTANTE


         Concluí a leitura do primeiro romance, escrito por Sandra Neves – Homicídio na Câmara Municipal. A obra, de trezentas e poucas páginas, consegue prender o leitor, através da narrativa cuidada, dinâmica, assertiva. O texto referencial, cuja temporalidade representada aponta para a engenhosa definição significativa da personagem Gérard Dépard, enquanto suporte de todo o desenrolar da intriga, numa organização literária com carácter transformador, impõe-se pela articulação comedida entre os aspectos descritivos e narrativos.

       Sandra Neves consegue aportar-nos, na agitação útil do sintagma, o prazer do seu próprio discurso, na “inteligência, mental e cúmplice, da sintaxe”, recordando, aqui e agora, Roland Barthes. E chama-nos à razão, no âmbito da sua explanação teórica e conceptual, para as representações mentais inerentes a um certo contexto histórico e ideológico situado entre os anos de 2034 e 2038, numa habilidosa antevisão (prolepse) dos factos ficcionados.

    Em toda a obra perpassa um discurso trepidante, agradável, cuja narrativa, por isso mesmo, se encontra imbuída do ritmo necessário, indispensável à arte de contar. No caso concreto do “Homicídio” que tenho em mãos, esse ritmo chega, por vezes, a expressar uma notável intensidade dramática, plasmada no enunciado discursivo, como o são os exemplos das passagens relativas ao assassinato de Alexandre Sem-Medo, às conversas com Gérard, ao gáudio psicopata de André, ou aos homicídios deliberados ocorridos no Aeroporto Francisco Sá Carneiro.

       Este primeiro livro de Sandra Neves tem o mérito duplo de, por um lado, ser o primeiro e, por outro lado, ter conseguido veicular uma mensagem urgente de alerta, face à corrupção que grassa no rectângulo e que, infelizmente, poderá estar para durar; paralelamente, a história e a narração da mesma, só nos chegam por meio da narrativa da autora, uma vez que só é possível que tal aconteça no âmbito da transmissão dessa mesma mensagem. É que o discurso só é narrativo se viver de uma espécie de interacção com a história que conta, obviamente, sem esquecer as nuances entre o tempo da história e o do discurso; a forma como o narrador interpreta a história e, por último, o tipo de discurso a que lança mão o narrador.

    Neste livro, chamo uma vez mais a atenção para a temporalidade da narrativa. Desta feita, depois de Gérard ter sido “convidado” a partir para Angola: ela é, sequencialmente, dual, isto é, a um tempo, significado e significante, emergindo daí realidades diferidas que transmigram um tempo num outro tempo, numa elaboração estética refrescante. Evidentemente que a história apresenta, logo de início, uma antecipação histórica, bem fundamentada (analepse), estruturando-se em várias relações temporais dinâmicas, de cariz possível, ao longo de toda a diegese. Analepses e prolepses são, como é sabido, contrabalançadas pela anacronia que se lhes interpõe...

   Um outro aspecto curioso, prende-se com a postura omnisciente da autora, enquanto narradora ausente como personagem da acção, não deixando de ser analítica do ponto de vista interior e, de uma perspectiva meramente exterior, assume-se como uma muito atenta observadora, na óptica da sua exegese.

      E, como este olhar já vai longo, direi apenas, para terminar, que Leonor apura, no final da história, o comportamento ancestral da mulher/mãe (matriarca), de que nos fala Jung, assumindo, por força da sua dignidade de género, o tabu da sua gravidez – e, aqui, reporto-me, também, ao conceito Junguiano de tabu – , quando ele refere o segredo incondicional, enquanto meio primitivo de fuga ao perigo... do psiquismo colectivo.
          Parabéns, Sandra! Um abraço do Manuel Bragança dos Santos.

3 comentários:

  1. Sem dúvida que por tudo o que descreve será um livro a não perder. Tudo o que nos transporte para uma ficção o mais possível "verosímil", possível cativa mais facilmente o leitor pela mera possibilidade "de".
    Abraço Maranduva

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  2. Meu querido
    Esta tua apresentação,dá vontade de ler o livro.(A intenção deve ser essa!)
    Não conheço a autora,mas há um outro detalhe que me desperta a curiosidade: o facto de a acção se passar daqui a 20 e tal anos.Será uma espécie de «policial»,de que tanto gosto? Mas há ainda um outro elemento com interesse: é a chamada de atenção para a corrupção.Quando acabará?!
    Fico com a impressão de que dava para fazer um filme, a partir desta obra.
    Espero que tenhas vivido um ótimo fim de semana,apesar do calor tórrido.
    Beijinhos da
    Mana

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