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No
âmbito do universo fascinante, misterioso e complexo do redentor imaginário
infantil, que a literatura especializada acicata, cultiva, expande e faz
frutificar, deparámo-nos, desde sempre, com a aparente (?!) e indefinida
sobreposição dos conceitos de fantástico e de maravilhoso, como se ambos se
recompletassem, de forma simbiótica, numa dependência mútua de saudável
compromisso comum. Mas precisemos um e outro, recorrendo a quem sabe.
Segundo Tzevtan Todorov (1939-2017),
transcrito por António Martins (2008: 50), a partir da citação de Henriqueta
Gonçalves (1995), “o fantástico divide-se em estranho-puro,
fantástico-estranho, fantástico-maravilhoso e maravilhoso puro.” “(...) No estranho-puro
são situados os acontecimentos inacreditáveis, extraordinários, chocantes e
insólitos, que podem perfeitamente explicar-se pelas leis do racional,
provocando, na personagem e no leitor, uma reacção inicial de hesitação,
semelhante à dos textos fantásticos. No fantástico-estranho situam-se os
acontecimentos que parecem sobrenaturais, pois levam a personagem e o leitor a
pensar que se trata da intervenção sobrenatural, tal é o insólito que
condensam, mas recebendo no fim uma explicação racional.”
“O fantástico-maravilhoso
abarca narrativas que se apresentam como fantásticas e que terminam por uma
aceitação do sobrenatural (...). O maravilhoso puro provoca uma atitude
na personagem e no leitor implícito semelhante à provocada pelo fantástico
puro. Os acontecimentos sobrenaturais não provocam nenhuma reacção especial nem
no leitor nem na personagem; o que está em causa é a própria natureza do
acontecimento. Todorov delineia quatro tipos dentro deste sub-género: o maravilhoso
hiperbólico, o maravilhoso exótico, o maravilhoso instrumental e o maravilhoso
científico” (Gonçalves 1995: 10-11).
É este o espaço difuso do imaginário
simbólico que os contos penetram, transfigurando a aprendizagem das crianças,
alicerçando valores, fundamentando vivências, amaciando dificuldades, através
de uma dinâmica puramente lúdica, criativa e intemporal de evasão pelo sonho
que se mescla entre a realidade e a maravilha, a maldade e a virtude, a falácia
e a verdade. Sublinhe-se, ainda, que o conto se redimensiona pela palavra e
pela magia que a mesma encerra, levando a criança a viajar entre a realidade e
a fantasia, em busca da rêverie compensatória das agruras do dia-a-dia,
atenuando a incompreensão e o gigantismo do quotidiano.
Estas escapadelas gratificantes,
proporcionadas pela magia dos contos, conseguem dotar ao mais novos de
competências cognitivas, afectivas e emocionais, tendentes a melhor
interiorizar a rudeza da interacção social na busca de defesas propícias a um
crescimento, paulatinamente, maturado, o que significa o abandono, sem dramas,
da fantasia inconsciente, quantas vezes recorrente nas crianças, do ansioso
retorno ao útero materno.
Em conclusão, acrescentaremos que, se no
maravilhoso se vestem de realidade todos os objectos não percepcionados
(imaginados) no cômputo do cortejo, das figuras e das peripécias de determinada
história, ainda que em contradição com as leis naturais da vida, já no
fantástico o sobrenatural assume uma expressão capaz de lidar com a hesitação entre
o real e o irreal, ressaltando a tónica da ambiguidade e da falsidade plausível
(o faz-de-conta infantil, o animismo e o mimetismo tão ligados ao simbólico)
capazes de diluir e impedir conclusões exactas (conscientes) sobre o assunto. É
que o homem será sempre espanto e procura da verdade, mas só assim será capaz
de se reinventar.
NOTA: Com a devida vénia a António
Martins e à sua obra – O Fantástico nos Contos de Mia Couto –
Potencialidades de Leitura em Alunos do Ensino Básico, Papiro Editora, Porto,
2008.
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