sábado, 29 de março de 2014

A NON-REAL REALITY

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O que se passa nos nossos dias, com a cultura de uma lógica mediática non-stop, principalmente na televisão e na rádio, tem acendido a ideia de que o jornalismo merece o seu espaço próprio, não sendo aconselhável, portanto, confundir comunicação com informação. Relativamente a esta dicotomia, e tendo em conta a destrinça para a qual aponta Watzlawick, citado por Mesquita (2004: 85), a comunicação interpessoal desdobra-se em relação-comunicação e em conteúdo-informação. Por seu lado, Bougnoux, também citado por Mesquita (2004: 85), chama a atenção para o facto deste tipo de relação-comunicação, tornar mais rica a mensagem informativa, mas nunca cedendo à tentação de um tipo de envolvimento que faça perigar a ética profissional e a deontologia jornalística, o que levaria sempre à mistificação da mais correcta leitura do real, cujo pano de fundo se desdobra ao olhar de quem o observa de forma atenta, para poder informar devidamente.
Mas, voltando à ideia geral que titula esta parte do presente trabalho – A Non-Real Reality, e depois de ter lido (Eduardo Paz Barroso, 2008: 195), no texto “A opinião publicada existe”, algo mais se me oferece dizer, nomeadamente, para além do título da obra - “A Locomotiva dos Sonhos”, que encerra, este, uma grande força, simbolicamente expressiva e conceptualmente pujante, diria mesmo, abrangentemente poética. O autor leva-nos, através de uma escrita desassombrada, a concluir que existe apenas a opinião publicada, em detrimento da opinião pública, em nome da cada vez maior influência, exercida sobre a vida social, pelos grandes meios de comunicação, que, são afinal respeitados, porque se movimentam nos meandros do poder, ao que parece, com grande àvontade, iludindo e substituindo a opinião pública, apresentando manifestações individuais e avulsas, enquanto reflexo de uma moral dominante legitimada por sentimentos colectivos, adulterando, afinal, o real tal e qual o mesmo se apresenta.
Fica, nesta medida, comprometido o discurso jornalístico, enquanto “mediação desinteressada do real” e, digo eu, referindo o atrás citado Bougnoux, não se verifica o devido afastamento e a cuidada análise que deve acautelar a visão neutral dos acontecimentos. E Paz Barroso (2008: 196) prossegue, afirmando que assim “os interesses do público se confundem com o interesse público”, uma vez que, o real não existe nem é reconhecido, se não for mediatizado.
Fazendo alusão ao sociólogo francês Bourdieu e a um artigo seu publicado na revista Les Temps Modernes, em Janeiro de 1973, Paz Barroso (2008: 196, 197) refere “a substituição no plano simbólico, da opinião pública por outras formas de opinião”. Fala depois na utilização jornalística de sondagens que partem do pressuposto de que existe consenso, a partir da questão colocada, como se não existissem outro tipo de problemáticas de real importância, para além daquela. É que, quanto maior for a desagregação social das massas, resultante da ausência de coesão por instinto, maior se torna a necessidade de serem e de se sentirem estimuladas por “interesses e motivações publicitárias”.
E recordo aqui a mobilização geral, extensiva às grandes massas populares, operada pela comunicação social no dia 25 de Abril de 1974 e seguintes e, do mesmo modo, a participação massiva do povo português, do Minho ao Algarve e Ilhas, numa mobilização do género, eivada de emocionalidade, aquando dos acontecimentos trágicos, vividos em Timor Leste, e que viriam a abrir caminho à Liberdade e à Independência daquela mortificada ilha. Como escreveu Carlos T. sobre Timor, para Rui Veloso musicar, “longe da vista, perto do coração”; no caso da Revolução dos Cravos, foi à vista de todos, mesmo no coração, apetece-me dizer. Mutatis mutandis, as grandes causas a gerar grandes consensos, a reforçar a cidadania, a instaurar o culto da liberdade, ainda assim, num clima mediatizado de coesão emocionalmente estimulada, mas, em ambos os casos, num cadinho social onde passa a fervilhar, por ignição, a coesão por instinto.
Estes exemplos, no entanto, constituem uma espécie de contraponto à linha de raciocínio seguida por Paz Barroso, quando o autor refere a demagogia dos media na busca de opiniões isoladas que o público confere, e que são aproveitadas apenas por aqueles para efeitos meramente decorativos, sem carácter social nem cívico, mas antes caricatural, como se de um reality show se tratasse.
Seguidamente, citando Eduardo Lourenço, o autor de A Locomotiva dos Sonhos, a propósito da forma como os “media convertidos em opinião pública”, se servem dos públicos, gerando audiências, recorda o já velhinho (Grécia antiga) ingrediente da demagogia, cujo sucesso se explica pela extraordinária convergência do interlocutor, ou seja, dito por outras palavras, as massas colocam-se, de forma decidida e definitiva, a jeito para que tal se concretize. Desta maneira “o rebanho das audiências”, vai ruminando no descalabro do entretenimento, que ele próprio busca, na desconstrução da democracia, enquanto sistema que vai conferindo legitimidade à forma como a opinião pública vai perdendo vitalidade e acção.
Esta quebra de posição, este esmorecimento, por parte da opinião pública, desvirtua a própria democracia, como referi atrás, fomentando, ao mesmo tempo, a assunção de novas formas de poder exercido sobre as massas, nomeadamente pela televisão, na senda da qual segue a imprensa escrita, como é o exemplo da pag. 30, do Jornal de Notícias, de 11 de Dezembro de 2010, num enquadramento de adormecimento generalizado que debilita a capacidade de reacção crítica face a esta realidade desfocada, porque mais não é do que uma non-real reality.
A este respeito foi paradigmático o caso da transmissão televisiva do programa Big Brother (ano 2000), e da Secret Story-Casa dos Segredos (2010), denominado este último, pela Contra-Informação (RTP1), pelo curioso título de Casa dos Secretos de Porco Preto... se calhar, enquanto divertida alusão a uma espécie de delicioso, mas indigesto pitéu de enfarta brutos, para utilizar aqui uma linguagem mais ao gosto das massas, porque a elas se lhes dirige.
A propósito do programa iniciado no ano 2000 – Big Brother, Paz Barroso recorda a visão de Pacheco Pereira, quando este evoca o célebre livro de George Orwell, intitulado 1984, e rotula o paralelismo constatado entre ambos de “metáfora do poder”. Fica a perder a democracia, por via da fragilidade dos media, em nome da ditadura do lucro.
Importa agora deixar claro a razão pela qual me inclinei a designar esta parte do trabalho por non-real reality, quando por todos é conhecida por “novela da vida real”. É sabido que uma novela é um enredo curto e simples, mais narrativo que descritivo, repleto de episódios dramáticos, mexericos e intrigas, que surge da cabeça e da mão do seu autor. Já a dita “novela da vida real” tem a sua origem a partir do protagonismo e interacção dos vários participantes, previamente encarcerados numa casa, ao longo de pouco mais de três meses, permanentemente observados pelas câmaras televisivas, que a “produção” comanda a seu bel-prazer, numa demonstração de poder supremo, e, como nota Pacheco Pereira, este poder controla também as audiências, reféns da casa, porque, como adianta Paz Barroso (2008: 201), “o sujeito já não controla a sua própria diversão”.
Voltando ao conceito non-real reality, direi que, tendo em conta a situação circunstancial de lugar onde se desenrola a acção, e à luz das mais elementares normas da psicologia, a realidade com a qual nos confrontamos assume uma dimensão manifestamente não-real, em virtude de estarmos perante um contexto forjado e forçado, logo absolutamente artificial, o que lhe confere um carácter, muito mais embotado do que airoso, muito mais amorfo do que enérgico, ou seja, muito mais vegetativo do que vivencial. Numa palavra, doentio. Estamos perante a negação da própria realidade, que os media artificializam, através da opinião publicada, para a qual nos adverte Paz Barroso (2008:202), concluindo provisoriamente que a mesma “existe e faz escola, mesmo que não tenha muitos discípulos”.

INÊS SANTOS


2 comentários:

  1. Este texto, amigo, merece reflexão. Concordo com o autor quando diz: "existe apenas a opinião publicada, em detrimento da opinião pública, em nome da cada vez maior influência, exercida sobre a vida social, pelos grandes meios de comunicação, que, são afinal respeitados, porque se movimentam nos meandros do poder, ao que parece, com grande à vontade, iludindo e substituindo a opinião pública". É verdade que isto fez e continua a fazer escola...
    Abraço.

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  2. Querida Inês
    Um texto magnífico e que realça aspectos que todos devemos ter em conta para não nos deixarmos ir a reboque.
    Os meios de comunicação social têm imenso poder sobre as massas e é pena que não aproveitem esse mesmo poder com fins mais didácticos.
    O teu escrito bem chama à atenção, esperemos que seja lido por muitos e que se reflicta .
    Parabéns .
    Beijinhos
    Beatriz

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