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Em
cada dia que passa, a rotina desdobra-se indecifrável para poder ser, por isso
mesmo, de leitura impenetrável, sem deixar de obedecer a um inelutável
paradigma de repetição, que tece o quotidiano com os velhos fios de um atavismo
estafado
-- Bom-dia, menina Alice
mais pelo esforço de se tentar
legitimar aos olhos da comunidade do que pela consumição de se reinventar ante
a modorra repetitiva dos mesmos gestos de sempre,
-- Menina Alice, entregue este
livro, por favor, ao Sr. Ventura; diga-lhe que é da parte do Queirós
porque as pessoas exigem – e isto a
título de exemplo, a atenção imediata da menina Alice, nem que ela esteja
ocupada, rotinada, como é o caso
-- Ah!, fica-lhe tão bem o vermelho
e o livro em cima do balcão da
recepção do ginásio, à espera da atenção da menina Alice [no País das
Mil-Ervilhas, (rasteiras ou de trepar)], por agora dirigida para o
casaquinho de lã encarnada que a Susaninha envergava naquela manhã gelada de
Primavera
-- Deixe ficar o livro, Sr. Queirós
a fazer pensar duas vezes os utentes
da Catedral-do-Esforço-Físico-Voluntário-não-Remunerado, antes de
optarem pela rotina dessa mesma dinâmica narcisista diária ou por outro
qualquer culto menos exposto e agasalhado
-- Vou subindo, então, obrigado
que isto de deitar cedo e cedo
erguer para ir ao ginásio e voltar, significa despir a roupa e vestir o pijama,
na véspera; despir o pijama e vestir a roupa, logo cedo pela manhã; já no
ginásio, despir a roupa e vestir o fato de treino; depois do exercício, despir
o fato de treino, tomar banho e vestir a roupa
-- Bolas, menina Alice, que rotina
enfadonha
mas é claro, nus é que não podemos
andar, que isso é que precipitaria as constipações e as gripes e as pneumonias
e outras manias voyeuristas ou não, quem sabe, para além da necessidade de
acautelar as miudezas pendentes, nem é bom pensar
--
Não querem lá ver o desconchavo?!
que a Susaninha chama-se assim, mas
já tem 50 anos bem medidos e lembra-se do 25 de Abril, mas não tem
memória da morte de Oliveira Salazar, o tal das rotinas, da modorra e do
autoritarismo impertinente, e que deu uma queda fatal em 1968 e todos pensaram
que tudo ia mudar, mas não. Permaneceu o atavismo requentado, fastidioso,
revigorado por Marcelo Caetano até 1974. Bem, ainda hoje (às Centenos)
permanece muitíssimo desses tempos de tão mau dano. E já lá vão 44 anos. E o
Queirós a contar o tempo e as flexões e os agachamentos e as elevações, e a
espantar a tensão acumulada, também pelo veste-e-despe inevitável, a valer
muito mais a pena, pelo contrário, quando se deita com a filha mais nova do
velho Acácio Lapa. A rapariga, de nome Jacinta – o pai fez gosto, por causa das
aparições de 1917, em Fátima – tem a idade da nossa democracia rectangular;
encontra-se mais ou menos liberta das
ideias quadradas do incontornável Acácio; exibe ainda um corpo de redonda sensualidade
e consegue cativar o Queirós com a sua natural envolvência amniótica, prenhe de
espontânea afectividade e telúricos orgasmos. Ora, tudo isto, se querem saber,
não é rotina, não senhor, é auto-estima, entrega e plenitude
-- Sr. Queirós, o amigo está em
grande forma!
ou não fosse o Queirós assíduo e
empenhado, sempre a pensar na mais nova do Acácio, pois claro, que a única
coisa que nos faz sentir acompanhados face ao vazio e à angústia existenciais
é, sem sombra de dúvida, O AMOR.
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