terça-feira, 19 de novembro de 2019

INTENÇÕES, RETENÇÕES, (IN)DECISÕES


      

IMAGEM INCONCEBÍVEL
       



        A discussão do programa do actual governo de Portugal (Novembro de 2019) aponta para a necessidade de lutar pela redução drástica do número de reprovações ao longo dos nove anos da escolaridade básica. Primeiro, foi desbaratada a classe docente; depois, foi destruído o sistema educativo; agora, surgem as apreensões com o redutor e inquietante quadro de insucesso dos alunos portugueses. Este telhado não assentará nunca sobre uma estrutura que já colapsou, devido à incúria dos sucessivos governos.

            A escola não é mais do que o reflexo da sociedade. Se, por um lado, no ensino pré-escolar a criança não brinca nem joga o suficiente e é já obrigada ou levada a aprender alguns rudimentos de aritmética e leitura (?!!!), por outro lado, é impedida, por falta de instalações adequadas, de dormir as necessárias e indispensáveis sestas. Quer num caso quer no outro, fica comprometido o papel da integração pessoal e social no jardim-de-infância, sendo coarctados a essencial paz de espírito, a observação, a acção, o conhecimento e a figuração.

         Desleixado este alicerce estruturante, na fase seguinte (1.º Ciclo do Ensino Básico) como estará a maturidade psíquica, social e afectiva da criança?! Estará apta a expandir-se, exigindo novos princípios ordenadores, actividades e contactos ou encontrar-se-á fixada em estádios arcaicos de desenvolvimento? Estará apta a abandonar o seu egocentrismo generalizado e caprichoso, para aceitar a privação e a observação da consciência da regra? Poderá transitar do sinctretismo para a diferenciação? Do jogo em isolamento colectivo para o sentido de tarefa, de criatividade... para as representações mágicas-pré-lógicas, para o raciocínio operatório (Piaget)? Para o domínio dos instintos?

            Como o ambiente familiar deixa muito a desejar – em Portugal, um quarto (25%) da população enferma de carências gritantes –, quando a criança chega ao 2.º Ciclo, tudo piora ainda mais. Trata-se da difícil fase de transição da infância para a adolescência em progressão: alterações hormonais, somáticas, temperamentais, desarmonia motriz; clivagem desenvolvimental geral entre géneros, evoluindo as raparigas cerca de dois anos relativamente a uma certa estagnação infantilizante dos rapazes... e a complexidade psicopedagógica, didáctica e lectiva (sempre ignorada) que tal desfasamento implica?!... 

            Aqui, a identidade, a afirmação, a inserção e a pertença, a interacção, a abertura e a aceitação dos pares e das hierarquias; a génese das psicoses e das perturbações patológicas da personalidade, em maior ou menor grau: a esquizo e a ciclotimia, a histriónica, a narcisista, a exibicionista, a paranóide em maior ou menor grau, etc., etc., etc.; as deformações de carácter, a tentação do bullying, o sucesso ou o insucesso, o autismo digital, a segregação relacional; as turmas sobrelotadas, a anarquia e a impunidade, a compulsão repetitiva, a alienação virtual e o vazio mental são realidades que não podem nem devem ser descartadas. Claro, mas o sistema educativo nacional não tem querido saber estar à altura.  Fechemos todos os olhos e seja o que Deus quiser.

            NOTA: Deixo, aqui, este breve esboço sobre uma temática que, por si só, justificaria um extenso ensaio.

           

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

REZA UM PADRE-NOSSO, QUE ISSO PASSA!...


      

  D.ª Joana Viana Lapa levara para o casamento, entre outras heranças valiosíssimas, a famosa Quinta da Patela, cujos terrenos produziam um dos melhores vinhos do Porto de todo a região Duriense. Infelizmente, esta senhora tinha tanto de rica como de frígida e beata, sempre obstinada pelo culto religioso, a qualquer hora do dia ou da noite; não se entendia muito bem, como tinha sido capaz de conceber, gerar e parir Catarina.

     O marido, Dr. Alfredo Abrantes, para além do interminável cortejo de doentes que atendia diariamente, da parte da tarde, normalmente até às dezanove horas, alimentava, com viciante pertinácia, um outro tipo de ocupação, depois do seu imediato e rápido jantar, donde saía a correr, na companhia do motorista, em direcção às Caldas de Moledo... Ao Casino das Caldas de Moledo, melhor dizendo! Há quem afirme que não o fazia diariamente, porque viagens daquelas, tantas vezes repetidas, constituiam uma perfeita loucura, mas, fosse como fosse, os dinheiros da família e do seu próprio trabalho foram desaparecendo, rapidamente, como a chuva nas areias do deserto.

    Que podia fazer ele mais, se a mulher o rejeitava sistematicamente?! O médico sofria como um condenado, de uma permanente penitência punitiva que lhe era imposta pela companheira; de uma abstinência insuportável, que lhe coarctava o legítimo gozo dos sentidos, em normalíssimo âmbito de partilha de afectos, como é próprio dos esposos e dos amantes que se desejam e amam e, portanto, comungam coniventes e prazenteiros
das delícias cúmplices e concupiscentes, inerentes à fusão dos corpos e das almas: eram marido e mulher, eram um só corpo e uma só alma, que diabo! Mas, perante tudo isto, que fazer, então?! O clínico, enquanto homem, vivia no mais completo desespero de causa. Cada noite passada em casa, redundava em autêntico calvário de sacrifícios e renúncias... E insónias! Como se não bastasse o jejum conjugal, tinha ainda de suportar os roncos e assobios da criatura.

         Para ele, o Casino, em todo o seu luxuriante esplendor de luzes e cores, imbuídas de sensuais reflexos lúbricos, representava uma certa lascívia difusa, que ele nunca conseguiria agarrar; por isso, voltava lá, vezes sem conta. Então, e o pano das mesas de jogo? Que textura! Que macieza e suavidade! Que toque voluptuoso! Que envolvência a daquela cor verde... Como a dos olhos de Joana... E o clímax desesperadamente ansiado de uma vitória na roleta? O torvelinho demoníaco da sorte intangível!... Não seria hoje também!... “Reza um Padre-nosso, que isso passa”, costumava contrariá-lo Joana. Por que razão não conseguia o médico atingir tão desejado paroxismo, ele que era tão cidadão como os demais, tão homem como tantos outros, tão marido como os que o são, tão macho como os melhores, tão amante como os que o desejam ser?!

In "O CHÃO DOS SENTIDOS" - Manuel Bragança dos Santos - 2013

CASINO DAS CALDAS DE MOLEDO (?!) - Imagem do Google