sexta-feira, 13 de março de 2020

TU NÃO SABES QUEM SOU




                   Tu não sabes quem sou nessa tal hora
                    nem quem és sabes ser devastação
                    se vir a ser soubesses só por ora
                    não serias de mim por pro-cisão

                    Quem sabe se na vida se deplora
                    a queda na difusa prolação
                    ou se se teme ser pela demora
                    outorgando verdades que não são

                    Estranha diversidade de ser
                    o Outro que também nos constitui
                    no pasmo que refuto por saber

                    projectar a recusa que reflui
                    na sombra especular de suster
                    o pouco mais ou menos que se intui

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domingo, 8 de março de 2020

UM ESBOÇO DE PAIXÕES


    (...) o seminarista Maurício, de novo em férias, dirigiu-se à Fonte e Lavadouro do Olho D´Água, para abraçar a mãe e a madrinha Juliana e a prima Rosália, e cumprimentar, timidamente, as restantes mulheres, naquele espaço mágico onde a água brota da Terra para vivificar as almas e os corpos, e as raparigas se orgulham das suas bilhas redondas, virtualmente capazes de matar a sede ao mais sequioso desejo (...)
    (...) -- Hoje precisas de descansar
    hoje sim, mas para o dia seguinte, Maurício ficava já convidado pela madrinha para almoçar em casa desta, no Lugar do Caneiro, onde não havia lugar a rejeições, nem a distanciamentos, nem a defesas egóicas, porque o espaço era aquecido pela consistência dos suportes identitários, que se estribam nos afectos estruturados pelos objectos reganhados, que atenuam a fragmentação do Self e acautelam a deterioração da ferida narcísica
    -- Vamos almoçar no alpendre
    com o Sol a aquecer os corações, a mesa foi posta debaixo daquela cobertura típica, e esperou-se pela chegada do tio Duarte, e foi aliviado o mecanismo projectivo mais arcaico dos presentes, porque os egos dos comensais dispensavam agora defesas, tendo sido tacitamente aceite a reciprocidade das identidades similares e fraternas, o que fazia erguer uma barreira indestrutível entre o Self e o não-Self dos componentes desta família ideal
    -- Vai fritar os jaquinzinhos* Zalinha
    e era tudo o que faltava fazer, para que fossem servidos bem frescos e estaladiços, e as férias assim tinham outro gosto e a prima Rosália estava no ponto da sensualidade, cujo apelo erótico impregnava, com o seu impacto vital, visual, viral, demolidor, o coração dos jovens da Planura, na procura do desejo que (cor)responda ao seu desejo, no âmbito da relação com o outro e não porque as necessidades, meramente instintivas, devam ser satisfeitas, na incrustação do real puro e duro
    -- Esta-se tão bem aqui
    os objectos internos encontravam-se perfeitamente apaziguados e os externos contribuíam para o equilíbrio desta intermitência no contexto de maior perigo potencial na vida do seminarista, não sendo necessárias projecções compensadoras de recalcamentos frustrados, e o Self podia respirar tranquilidade e assunção plena, libertando o sujeito
    -- Já viste como a tua prima está linda?
    -- Sim está bonita
    Maurício parecia não reagir à veemência fetichista das formas proeminentes, apelativas, magnéticas de Rosália, à materialidade do seu corpo, a esse apelo ensurdecedor e enigmático da Natureza, à convergência genital, através da pulsão do desejo vivo e hesitante, (...)

Nota: * jaquinzinhos – carapauzinhos minúsculos

In “NÃO SEI SE DE MIM SABEREI ALGO”, 2020 – Romance de Manuel Bragança dos Santos (pág. 99).

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segunda-feira, 2 de março de 2020

ANSIEDADE E DESCRENÇA


     A propósito de um conteúdo fílmico de 2017, apresentado ontem (01 de Março de 2020), em horário tardio, pelo canal televisivo que a população do rectângulo financia coercivamente, diremos apenas que desligámos o receptor, não só profundamente decepcionados, mas também incontornavelmente incomodados. Perante algo tão sórdido, não conseguimos perceber de que serviço público fala o tal canal.

     O título da projecção aludia a “O Fim da Inocência” e apresentava um grupo de adolescentes, pertencente à classe abastada, em contexto do mais completo desnorte, vítimas do império dos sentidos, no âmbito da já estafada e degenerada triologia – sexo, drogas e rock`n`roll, tornada moda pela decadente sociedade do espectáculo, e, modernamente, a funcionar pela acção tenebrosa da omnipresente globalização.

     A globalização, ao contrário do que se possa pensar, significa isolamento multitudinário, porque anula a subjectitividade relacional de cada um; a globalização, por ser omnipresente, destrói também o tempo de estruturação e maturação dos corpos e das almas; a globalização, por se apresentar como a mensageira do pensamento único, impede a reflexibilidade e a consciência moral dos indivíduos, agora formatados pelo panegírico do colectivo.

     Cada vez mais, face ao descalabro social, político e económico do Ocidente, o fim da inocência voltou, porque não se aprendeu nada com os miseráveis factos ocorridos ao longo da Segunda Guerra Mundial; porque os governos escamoteiam deliberadamente o papel da Educação; o papel da família; a necessidade do Homem se transcender, já que não é um simples bicho que se rege tão-só pelos instintos.

     Vergadas sob o peso da ansiedade, as crianças são separadas prematuramente das mães, em nome do falso progresso, onde se confundem identidades, estatutos e papéis, com perdas regressivas e de dependência comportamental dos recém-nascidos, cada vez mais próximos do cão e do gato. As exigências laborais tornam as mães ainda mais ansiosas – omissas ou hiperprotectoras, remetendo os filhos para o fosso da carência emocional. A aversão, a fobia ou a inadaptação à escola vão fazendo escola.


     Está aberto, desde o berço, o caminho para a ansiedade neurótica na adolescência e na adultícia; está trabalhado o chão dos vários trantornos de personalidade psicotizada, marcados por inevitáveis surtos limítrofes de descrença pessoal, que a organização mental compensatória procurará suprir, de forma desviante e heterodoxa, como no enredo do deplorável filme a que (não) assistímos, em horário tardio, no canal oficial do rectângulo.

Nota: Sobre o mesmo filme, aceder à crónica:
https://maranduvaline.blogspot.com/2017/12/subsidios-para-debater-adolescencia.html