segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

SEM SABER TOLERAR




Sem saber tolerar a frustração
           nas cinzas destes versos és projecto
 ao trocar a pendular dispersão
 pelo ardil delirante mais dilecto

         Crescemos sem crescer no coração
     pra trilhar um caminho nada recto
de ressaibos opostos de razão
    possessos do ciúme mais infecto

         Des-con-ti-nua puro sem roupagens
      meu suspeito alter-ego confidente
  na fatal destruição por imagens

Ferida narcisista tão premente
            meu terror desprovido de mensagens
           sem marcos nem limites só de-mente
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QUISERA CONTAR CONTIGO




                      Quisera contigo contar contida
                      tão dada como se soubesses ser
                      de frente sem tabus enlanguescida
                      de força repartida sem saber

                      Quisera soletrar contigo a vida
                      dividindo na soma de te ter
                      o todo de perder cada partida
                      pela Fé de saber poder vencer

                      À beira da miragem dos teus seios
                      valido de somenos os contornos
                      aclástico luzir de devaneios

                      que me gritam nos plácidos entornos
                      como se padecer de tais enleios
                      fosse agarrar o touro pelos cornos

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sábado, 7 de dezembro de 2019

OCULTOS PELA MULTIDÃO


              Image result for relaçoes humanas




                           Ocultos pela multidão dolente


                           seguirão tais estranhos divididos


                           a passo sem sentir que quem não sente


                           reverbera fantasmas preteridos





                           In anima nobili de repente


                           chocamos com a volta de pruridos


                           não é que não sejamos todos gente


                           mas há marcos que tolhem os sentidos






                           Querer ter do poder identidade


                           torna frágil a força de se ser


                           como se quem não quer comunicar






                           nos dissesse da loucura que verdade


                           nos lança no virtual desprazer


                           estranhando prover alteridade




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terça-feira, 19 de novembro de 2019

INTENÇÕES, RETENÇÕES, (IN)DECISÕES


      

IMAGEM INCONCEBÍVEL
       



        A discussão do programa do actual governo de Portugal (Novembro de 2019) aponta para a necessidade de lutar pela redução drástica do número de reprovações ao longo dos nove anos da escolaridade básica. Primeiro, foi desbaratada a classe docente; depois, foi destruído o sistema educativo; agora, surgem as apreensões com o redutor e inquietante quadro de insucesso dos alunos portugueses. Este telhado não assentará nunca sobre uma estrutura que já colapsou, devido à incúria dos sucessivos governos.

            A escola não é mais do que o reflexo da sociedade. Se, por um lado, no ensino pré-escolar a criança não brinca nem joga o suficiente e é já obrigada ou levada a aprender alguns rudimentos de aritmética e leitura (?!!!), por outro lado, é impedida, por falta de instalações adequadas, de dormir as necessárias e indispensáveis sestas. Quer num caso quer no outro, fica comprometido o papel da integração pessoal e social no jardim-de-infância, sendo coarctados a essencial paz de espírito, a observação, a acção, o conhecimento e a figuração.

         Desleixado este alicerce estruturante, na fase seguinte (1.º Ciclo do Ensino Básico) como estará a maturidade psíquica, social e afectiva da criança?! Estará apta a expandir-se, exigindo novos princípios ordenadores, actividades e contactos ou encontrar-se-á fixada em estádios arcaicos de desenvolvimento? Estará apta a abandonar o seu egocentrismo generalizado e caprichoso, para aceitar a privação e a observação da consciência da regra? Poderá transitar do sinctretismo para a diferenciação? Do jogo em isolamento colectivo para o sentido de tarefa, de criatividade... para as representações mágicas-pré-lógicas, para o raciocínio operatório (Piaget)? Para o domínio dos instintos?

            Como o ambiente familiar deixa muito a desejar – em Portugal, um quarto (25%) da população enferma de carências gritantes –, quando a criança chega ao 2.º Ciclo, tudo piora ainda mais. Trata-se da difícil fase de transição da infância para a adolescência em progressão: alterações hormonais, somáticas, temperamentais, desarmonia motriz; clivagem desenvolvimental geral entre géneros, evoluindo as raparigas cerca de dois anos relativamente a uma certa estagnação infantilizante dos rapazes... e a complexidade psicopedagógica, didáctica e lectiva (sempre ignorada) que tal desfasamento implica?!... 

            Aqui, a identidade, a afirmação, a inserção e a pertença, a interacção, a abertura e a aceitação dos pares e das hierarquias; a génese das psicoses e das perturbações patológicas da personalidade, em maior ou menor grau: a esquizo e a ciclotimia, a histriónica, a narcisista, a exibicionista, a paranóide em maior ou menor grau, etc., etc., etc.; as deformações de carácter, a tentação do bullying, o sucesso ou o insucesso, o autismo digital, a segregação relacional; as turmas sobrelotadas, a anarquia e a impunidade, a compulsão repetitiva, a alienação virtual e o vazio mental são realidades que não podem nem devem ser descartadas. Claro, mas o sistema educativo nacional não tem querido saber estar à altura.  Fechemos todos os olhos e seja o que Deus quiser.

            NOTA: Deixo, aqui, este breve esboço sobre uma temática que, por si só, justificaria um extenso ensaio.

           

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

REZA UM PADRE-NOSSO, QUE ISSO PASSA!...


      

  D.ª Joana Viana Lapa levara para o casamento, entre outras heranças valiosíssimas, a famosa Quinta da Patela, cujos terrenos produziam um dos melhores vinhos do Porto de todo a região Duriense. Infelizmente, esta senhora tinha tanto de rica como de frígida e beata, sempre obstinada pelo culto religioso, a qualquer hora do dia ou da noite; não se entendia muito bem, como tinha sido capaz de conceber, gerar e parir Catarina.

     O marido, Dr. Alfredo Abrantes, para além do interminável cortejo de doentes que atendia diariamente, da parte da tarde, normalmente até às dezanove horas, alimentava, com viciante pertinácia, um outro tipo de ocupação, depois do seu imediato e rápido jantar, donde saía a correr, na companhia do motorista, em direcção às Caldas de Moledo... Ao Casino das Caldas de Moledo, melhor dizendo! Há quem afirme que não o fazia diariamente, porque viagens daquelas, tantas vezes repetidas, constituiam uma perfeita loucura, mas, fosse como fosse, os dinheiros da família e do seu próprio trabalho foram desaparecendo, rapidamente, como a chuva nas areias do deserto.

    Que podia fazer ele mais, se a mulher o rejeitava sistematicamente?! O médico sofria como um condenado, de uma permanente penitência punitiva que lhe era imposta pela companheira; de uma abstinência insuportável, que lhe coarctava o legítimo gozo dos sentidos, em normalíssimo âmbito de partilha de afectos, como é próprio dos esposos e dos amantes que se desejam e amam e, portanto, comungam coniventes e prazenteiros
das delícias cúmplices e concupiscentes, inerentes à fusão dos corpos e das almas: eram marido e mulher, eram um só corpo e uma só alma, que diabo! Mas, perante tudo isto, que fazer, então?! O clínico, enquanto homem, vivia no mais completo desespero de causa. Cada noite passada em casa, redundava em autêntico calvário de sacrifícios e renúncias... E insónias! Como se não bastasse o jejum conjugal, tinha ainda de suportar os roncos e assobios da criatura.

         Para ele, o Casino, em todo o seu luxuriante esplendor de luzes e cores, imbuídas de sensuais reflexos lúbricos, representava uma certa lascívia difusa, que ele nunca conseguiria agarrar; por isso, voltava lá, vezes sem conta. Então, e o pano das mesas de jogo? Que textura! Que macieza e suavidade! Que toque voluptuoso! Que envolvência a daquela cor verde... Como a dos olhos de Joana... E o clímax desesperadamente ansiado de uma vitória na roleta? O torvelinho demoníaco da sorte intangível!... Não seria hoje também!... “Reza um Padre-nosso, que isso passa”, costumava contrariá-lo Joana. Por que razão não conseguia o médico atingir tão desejado paroxismo, ele que era tão cidadão como os demais, tão homem como tantos outros, tão marido como os que o são, tão macho como os melhores, tão amante como os que o desejam ser?!

In "O CHÃO DOS SENTIDOS" - Manuel Bragança dos Santos - 2013

CASINO DAS CALDAS DE MOLEDO (?!) - Imagem do Google

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

A QUE SE OBRIGA O SUJEITO


   Quem vive num estado de direito democrático, enquadra-se, em termos de estatuto e papel, num conjunto de direitos e deveres que fazem parte do seu quotidiano, e aos quais se não deve furtar – os segundos –, nem desprezar – os primeiros, sob pena de se automarginalizar e, por motivos de atropelo (ilícitos) dos vários códigos reguladores da respectiva sociedade, vir a ser sancionado.

   Sendo assim, há, até, quem prescinda dos seus direitos (quantas vezes, por ignorância), mas, pelo contrário – e pensando agora nos deveres –, o desconhecimento da lei não iliba quem a não cumpre. Logo, os deveres constituem, inalienável e eticamente, algo a que se obriga o sujeito, o indivíduo, o cidadão, enquanto entidade reconhecidamente moral e em perfeita fruição das suas faculdades mentais.

   O mesmo vale, também, no âmbito da interacção pessoal e social e no quadro institucional mais lato dos contactos de determinadas comunidades de indivíduos.. Contudo, mutatis mutandis, pode discutir-se até que ponto o cumprimento de uma obrigação moral constitui uma necessidade imposta ou naturalmente determinada... Esta, é mesmo levada a cabo; já, aquela, pode, mesmo, ser ignorada.

   Como se escreveu atrás, nem todos usufruem dos seus direitos, seja por ignorância, falta de sentido de oportunidade ou discordância (?!!), ou, então, por negligência, inércia ou desleixo. Já no que se refere aos deveres (morais), estes podem ser cumpridos, ou não, caso sejam aceites e, para isso, devem, primeiro, ser interiorizados. Mas, para que tal aconteça, convém perceber a sua razão de ser, dado esta revestir sempre móbiles subjectivados:

 Estes podem abarcar implicações sociais, doutrinárias, políticas, axilológicas, entre outras. Ora, nestes casos, o sujeito, o indivíduo, o cidadão terá sempre a prerrogativa de avaliar, ponderar e, finalmente, decidir com pragmatismo e sentido de liberdade, sem, no entanto, beliscar ou comprometer a liberdade do(s) outro(s).


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sexta-feira, 25 de outubro de 2019

A DEVASSA SOCIAL


   No nosso “Admirável mundo novo” (Aldous Huxley, 1932), repleto de inovações tecnológicas, de comodidades e facilidades, de automatismos e do pan-acontecimento-conhecimento-em-tempo-real, tudo estaria bem, já que o progresso é o progresso e, sendo assim, apresenta-se o mesmo como reforço, resposta e tónico, aparentemente compensador da ambição desmedida da espécie humana. Àquela, junta-se a territorialidade e a agressividade para, no seu conjunto, gerarem a artificial necessidade de acumulação irracional de bens e vantagens de todo o tipo.

   Nada disto se passava, claro, nas tribos virgens de caçadores-recolectores ainda existentes no globo nos primórdios do século (XX) passado (Malinowski, 1884-1942, cit por Reich, 1897-1957). Estas foram desmanteladas, exploradas e aniquiladas pelo braço “civilizador” europeu... embora a História se tenha vindo a repetir desde os alvores da humanidade. Contudo, nos dias que correm, a sofisticação e a sub-repção dos impérios emergentes tem vindo a ultrapassar todos os limites do inteligível e do suportável, visando o controlo, punição e exploração generalizada dos cidadãos e, mais do que isso, impondo os seus métodos às nações mais frágeis e economicamente dependentes.

   O preço a pagar pelo actual estado das coisas é elevadíssimo. Retendo que, na longa caminhada, já efectuada pelo Homem, entre a natureza e a sociedade, foi necessário interiorizar códigos de conduta mediadores dessa passagem, pautada por um conjunto de sistemas simbólicos, estes passaram de geração em geração, funcionando como facilitadores da integração social. Configuraram, então, a consciência moral do indivíduo e a sua representação dos interditos (o SuperEgo); o sujeito obstruído do desejo evitaria a transgressão dos limites (Freud, 1856-1939 e Lacan, 1901-1981).

   Mas falávamos do preço a pagar: o organismo e o cérebro humano não suportam tanta excitabilidade e pressão; tamanha coacção e exigências; tão aberrante contraciclo biofisiológico, e reage através do abaixamento do nível mental (Pierre Janet, 1859-1957), obnubilando o estado regulador e orientador da consciência, desfasando e desintegrando o sujeito da cultura. A ansiedade não só inibe o pensamento, mas, paralelamente, faz disparar o mesmo; transmite uma sensação de entorpecimento, de abulia, de vazio, de ausência do espaço e do tempo, de conturbação alienante. E isto, sem referir a escravidão a que nos quer sujeitar a dominação escópica, optimizada pelo panopticismo oculto que tem vindo a crescer de forma inexoravelmente galopante (Quinet, 2019). Voltaremos a este assunto!


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segunda-feira, 21 de outubro de 2019

NO RIGOR DOS CAMINHOS


              No rigor dos caminhos desbravados
              nascemos sem pensar em tal ventura
              para sermos sentidos como dados 
              mal-jogados de forma prematura

              Das afrontas dos rostos mal-amados
              que dizer dos umbigos em cesura
              do viés tão fendido dos seus brados
              do tempo sem razão nem cobertura

              Da forte fragilidade do vento
              no restolho das campos já ceifados
              dos dilemas nascidos ao sol-pôr

              no desenho das velas em tormento
              o sémen de novos sonhos doirados
              surgirá por acaso dessa dor ?

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segunda-feira, 14 de outubro de 2019

DESORDENS E DISFUNÇÕES DA LIBIDO


    Ao contrário dos restantes mamíferos, que se regem pela intermitência cíclica da fixação dos instintos (cio), para assegurar a perpetuação das espécies, no ser humano o instinto é fixo, mas continuado. Contudo, como a humanidade acedeu à cultura (simbólico) e se rege pelas interdições que a mesma impõe, o instinto é latente e é polarizado pela pulsão do desejo, sempre vivo mas errático e hesitante. Este é captado pelo imaginário-simbólico-inconsciente de cada um, pelo que, em sede de conjugalidade, se manifesta de forma muito pessoal e especificamente caracterológica.

    Para uma melhor percepção destas singularidades, vamos comparar o instinto à âncora dum veleiro (pessoa), e o desejo às velas do mesmo; o imaginário-simbólico-inconsciente seria aqui representado pelos caprichos do vento, das correntes e marés. Nesta conformidade, vamos aceitar os desvios da sexualidade simplista, situando-os no campo-largo dos preliminares que preparam a ritualidade corporal e afectivo-emocional e apontam para o objectivo final do(s) orgasmo(s) de ambos os cônjuges, em contexto de convergência sexual-mútua-relacional-dual. Excluiremos, porém, a obstinação mórbida e fixa dos comportamentos sexuais lesivos do carácter, da sensibilidade, da liberdade e da integridade física e moral dos parceiros. Esta patologia tem o nome de perversão – desejo tsunâmico.

    Este tipo de desordens inconscientes, portanto, não levam os doentes a procurar ajuda clínica, ainda que o cônjuge se queixe, proteste, reclame ou mendigue uma alteração de comportamentos, pois nada se passa, afinal, sendo a culpa sempre do(a) outro(a). Também acontece – raramente – que estes desejos mórbidos possam ser esforçadamente reprimidos, para explodirem por desinibição alcoólica, por desequilíbrio esquizóide ou por pressão demencial. Em termos sociais, estes transtornos podem comprometer a liberdade e segurança dos cidadãos.

   Nestes casos, o sistema de saúde e o sistema de justiça devem avaliar a impudência perpetrada sobre as pessoas e decidir da inimputabilidade ou não do autor dos desmandos; pelo internamento periódico deste e pela sua cooperação, se se verificar a obsessão compulsiva dos seus actos; finalmente, e em resultado desta parceria, deve ser possível a aplicação de uma sentença ponderada e proporcional ao enquadramento clínico e jurídico dos factos ocorridos.

    Sempre que não está em causa o coito propriamente dito, pode verificar-se o delírio objectal, o fetichismo, a bestialidade (zoofilia), a distorção do objectivo (voyeurismo escopófilo, exibicionismo, travestismo, sado-masoquismo, etc.), que têm sido considerados como sendo regressões desviantes da maturação sexual-afectivo-emocional, devido a traumas ocorridos na 1.ª infância. Aqui, a transgeracionalidade, à qual se juntam papéis parentais disruptivos ou inoperantes, bem como o processo identitário torpedeado podem estar na origem destes desvios ou perversões, conforme a sua dinâmica e intensidade.

    Por último, as disfunções que advêm da ansiedade profunda e continuada ou da culpabilidade que radica no pavor de vir a falhar no protagonismo do acto conjugal, traduzem-se, por exemplo, na dispareunia (coito doloroso), na frigidez, na ejaculação precoce ou mesmo na mais redutora impotência. Tudo pode ter solução, embora seja mais simples tratar os problemas considerados mais leves (?!) do que os que têm origem psicológica profunda e que se enredam em complexos traumáticos inconscientes.
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quinta-feira, 10 de outubro de 2019

ÉS ASSOMBROSA (Sem Tatuagens)



                   És assombrosa diva sensual
                   maravilha fatal disse Camões
                   tágide tu serás de pedra e cal
                   se vieres sem tenças nem punções

                   Desejo sedutor e esponsal
                   fruta-tez de lânguidas fruições
                   rubor acetinado e visceral
                   pura cútis de tantas oblações

                   Que nos queres dizer tu afinal
                   se te mostras oculta e sem carisma
                   como tela pintada tão soturna

                   nos ecos desse frémito tribal
                   repetido pelo modal sofisma
                   do nada que te torna taciturna?



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sábado, 5 de outubro de 2019

POR QUERER VIVER...


   "(...) Uma hora depois, o pai, a um tempo irritado, intrigado e preocupado, meteu pés ao caminho na direcção da casa da irmã Albertina. Estupefacto, avistou a filha junto do pequeno ribeiro da aldeia, com os pés metidos na água:

-- Estás maluca, rapariga?! O que é que estás aí a fazer?! Então, os ovos?!
Agripina estremeceu, mas não perdeu a face:
-- Estou a lavar os pés, meu pai; calquei merda de cão!
-- Essa agora, e então não sujaste as sandálias?!!!
-- Não, senhor, porque já as trazia na mão; estavam-me a apertar nos calcanhares.
-- Vamos aos ovos, rápido. Estás cada vez pior. No próximo Domingo vamos ter de conversar com o Padre Alípio... os dois, ouviste?

   Já com os ovos comprados, pai e filha voltam para casa e, devido ao adiantado da hora, limitam-se a comer uma sanduíche de presunto e a beber um copo de maduro branco. Aquilo não tinha jeito nenhum de almoço de Domingo, mas foi o castigo da menina, por andar com a cabeça no ar. E que fosse rapidamente para a cozinha, acender o forno, que o pão-de-ló tinha de ser feito. Na alma de Agripina, no âmbito deste terrível conflito familiar, agravava-se o mal-estar interior, a tensão nervosa e a ansiedade.


   Para o ignorantão do pai, toda esta instabilidade, esta sensibilidade exagerada de que a filha parecia enfermar, resolver-se-ia com a simples bênção do Padre Alípio. Ainda para mais agora, que a catraia tinha dado um salto brusco no seu crescimento e começava a ficar redondita de formas como a falecida Alzira. “Que Deus nos valha e guarde”! “E tenho de falar com a minha irmã também; às tantas o Padre não entende nada destas trapalhadas da vida; mas que grande porra!...” (...)"

In "As Cores da Alma", 2014, Manuel Bragança dos Santos. https://www.amazon.com/Cores-Portuguese-Manuel-Bragan%C3%A7a-Santos-ebook/dp/B07D9515RC

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quinta-feira, 3 de outubro de 2019

O DOENTE BIPOLAR



   Quando se faz referência à humanidade e aos afectos que a devem ligar, importa falar do cérebro para lembrar o papel ancestral do córtex cinguladosistema límbico, onde se alocam os sentimentos ou afectos primários dos primeiros mamíferos; e do neo-córtexsede das funções cognitivo-afectivas superiores complexas, capazes de pensamento e linguagem e de diferenciar emoções. Mas, o acesso à cultura e à estrutura simbólica que a consubstancia tem tido efeitos, mais ou menos disruptivos, que têm redundado, ao longo do tempo, em perturbações e alterações que distorcem a afectividade em geral e, em particular, a sanidade mental.

   Embora a moderna psiquiatria, nos alvores do século XX, tenha balizado diferenças entre as perturbações afectivas generalizadas, que oscilam entre a tristeza e a euforia – Valentin Magnan (1835-1916) apelidou o fenómeno de “loucura intermitente”; e Emil Krapelin (1856-1926) tivesse oposto a este as demências precoces (paranóia, hebefrenia e catatonia); foi Eugen Bleuler (1857-1939) quem, a partir desta instância nosográfica, as designou de esquizofrenia. Pensamos que esta especificação é útil nesta fase da abordagem da matéria em apreço. Assim, as perturbações afectivas de carácter geral, note-se, ao contrário da esquizofrenia, não derrotam, irremediavelmente, nem a personalidade nem o intelecto do indivíduo.

   Contudo, convém lembrar que este tipo de afecções, de certa forma, acompanhará o doente pela vida fora. A recorrência verificar-se-á através de uma variabilidade e periodicidade irregulares, podendo configurar bipolaridade e unipolaridade. Nestas, o quadro habitual é a depressão; naquelas, a síndroma integra, alternadamente, crises maníacas e crises depressivas. Ainda assim, não esqueçamos que, quer num caso quer no outro, a qualidade de vida do doente e de quem com ele (con)vive se altera profundamente, sendo necessário manter um tratamento farmacológico cri-te-ri-o-so e terapia de proximidade; raramente se recorre à electroconvulsivoterapia.


   Não faremos, por agora, o enfoque etiológico desta perturbação, mas, ainda assim, apontaremos para causas transgeracionais de ordem genética e biológica, e para o ambiente familiar onde grassa a violência doméstica, a frieza emocional e afectiva, a crueldade mental, o sadismo e a asfixia relacional; tudo isto, afinal, passível de induzir insuportáveis stresses.
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segunda-feira, 30 de setembro de 2019

FIQUEMO-NOS


                 Fiquemo-nos pelas evocações
                 num apelo capaz de comportar
                 a partir das cinzas sem soluções
                 o nulo passível de concentrar

                 caminhos ausentes das dimensões
                 tão-só sonhadas ou por mascarar
                 dos vagos rumos das imprecisões
                 já sem futuro nem caução solar

                 Fiquemo-nos talvez pelo presente
                 na fuga dos fantasmas do passado
                 na rota que se refracta demente

                 na dolorosa presença do fado
                 contido no passado recorrente
                 descrente do futuro ali ao lado
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quarta-feira, 25 de setembro de 2019

OS FILHOS TÊM DE SER MERECIDOS



   O nascimento de uma nova vida humana constitui sempre um trauma, seguramente para a criança. Compete à mãe a tarefa de readaptação da sua nova condição de recém-nascida, através dos seus corpos, integrando-a, o melhor possível, no ambiente familiar, onde a presença do pai e dos irmãos, se os houver, é também crucial. É importante garantir os vínculos necessários, desde logo, para potenciar toda a riqueza inerente ao desenvolvimento infantil.

   A não ser assim, cava-se o fosso do trauma e a vacuidade narcísica; fomenta-se o apagamento emocional; esfuma-se a alegria de viver e de descobrir; engendra-se um quadro de somatização onde está patente o instinto de morte, resultante da angústia da perda do objecto. O psiquismo do sujeito é profundamente abalado, instaurando-se a desordem e a perda da consciência moral e agravam-se as feridas narcísicas.

  Neste tipo de situações (recordamos casos concretos), ocorrem sempre negligências relacionais maternas graves e continuadas, nos cuidados primários e subsequentes, onde a interacção se pauta por uma proximidade parasitária dual de cariz sado-masoquista. Aqui, a criança internaliza apenas a frustração da perda e rejeição que a isola, perturba e confunde. Depois do universo inconsciente dos pais ter pesado sobre a gestação e o nascimento do novo filho, acresce agora o seu comportamento disruptivo.

   Estamos em presença de modelos de vinculação precários e redutores que aniquilam a capacidade de adaptação à família, à escola e ao social, como se a criança tivesse de atravessar um precipício através de uma ponte-rudimentar-sem-grades: mostrar-se-á insegura, apavorada, frustrada, revoltada e ansiosa; correrá o risco eminente, também, ao longo da vida, de sofrer de patologias de cariz neurótico ou psicótico.

   O seu psiquismo tenderá a procurar defesas compensatórias, por sistema, através da denegação e da regressão; do recalcamento e da foraclusão; da clivagem e da identificação projectiva. É a luta desesperada do Ego, na tentativa de aquietar a ferida narcísica e a gestão objectal; de se furtar às malhas da psicose, mas incapaz de evitar as neuroses obsessivas e a variabilidade da sintomatologia psicossomática.



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sábado, 21 de setembro de 2019

SE JÁ NÃO TEMOS TEMPO




                Se já não temos tempo para nada
                por ser o mais do tempo capital
                somos reféns da vida dissipada
                pelo ferrete pós-colonial*

                Dividir a gente dilacerada
                como quem lhe garante o seu bornal
                busca tão-só reinar na balaustrada
                do redondel do circo mais fatal

                Clivar é projectar o que se quer
                libertar do desejo que nos tolhe
                sem tempo nem lugar e sem sequer

                permanecer nas ondas ou no molhe
                como se desfolhar um malmequer
                pudesse ser o fim que nos acolhe

Nota: *pós-colonial = paramodernidade 
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domingo, 15 de setembro de 2019

DINÂMICA JORNALÍSTICA SIGNIFICANTE


   O Homem é um ser eminentemente social, porque possui a capacidade de comunicar. Para isso serve-se da sua competência linguística que, como refere Roman Jakobson (1896-1982), assenta na existência de um código comum que fundamenta essa mesma comunicação (Kristeva, 1969: 25). O esforço comunicacional que veicula o discurso integra, estruturalmente, o emissor e o receptor, verificando-se, por via de regra, o desejo não só do primeiro fazer passar a mensagem ao segundo, mas também a necessidade de exercício de uma certa influência ideológica no mesmo sentido: tal como disse Jaques Lacan (1901-1981), citado por Kristeva (1969: 26), as formas de operar o discurso concreto “são as da história enquanto constituição da emergência da verdade no real”.

Do mesmo modo, o discurso jornalístico é uma forma de linguagem que se concretiza no acto de comunicar, seja ele operacionalizado de forma oral ou escrita. O discurso, os múltiplos discursos, incluindo o jornalístico, apresentam-se-nos, desde que existe a comunicação social, como um autêntico espelho da sociedade, quer nos cheguem sob a forma de discursos políticos, discursos publicitários, discursos filosóficos, quer sob uma outra qualquer forma. Também aqui, uma vez mais, se verifica a reciprocidade de influências entre ambas as partes, isto é, entre a sociedade propriamente dita e os vários discursos e vice-versa.

Quer dizer: é a sociedade que, plasmada no real, fornece enunciados, cuja legibilidade objectiva apresentar-se-á, de uma forma ou de outra, eivada daquela subjectividade inerente ao tipo de leitura que o jornalista, o político, o filósofo ou o cidadão comum possam fazer, de acordo com o seu próprio edifício sócio-cultural e económico, não sendo de somenos importância o contexto ideológico de cariz democrático ou de outro tipo, tal como se deixou antever no primeiro parágafo deste texto, ao referir Julia Kristeva (1941-++++). É que a(s) frase(s) que dá (dão) forma ao discurso, gera(m)-se a partir do enunciado, enquanto conjunto articulado, organizado de palavras com sentido sintagmático, revestindo sempre, de forma voluntária ou não, a já aludida feição ideológica que a mensagem faz transportar.


   Seguidamente, a partir do corpus que congrega o discurso, importa proceder à sua verificação, numa linha de congruência analítica que possa garantir a quem o elabora, o tipo de comentário necessário à posterior elucidação do público ao qual se destina, no âmbito do assunto contemplado. Estamos já perante o discurso jornalístico, ou seja, é esta a matéria que engloba um quantum informativo, susceptível de gerar o comentário que se lhe adequa. Não se pense, no entanto, que um texto constitui, por si só, o discurso jornalístico. Evidentemente que não. Nem tal seria possível. O texto gera sempre outros textos, dando corpo ao discurso com sentido, no âmbito da realidade sistémica global vivida em cada ciclo noticioso diário.


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