sábado, 5 de outubro de 2019

POR QUERER VIVER...


   "(...) Uma hora depois, o pai, a um tempo irritado, intrigado e preocupado, meteu pés ao caminho na direcção da casa da irmã Albertina. Estupefacto, avistou a filha junto do pequeno ribeiro da aldeia, com os pés metidos na água:

-- Estás maluca, rapariga?! O que é que estás aí a fazer?! Então, os ovos?!
Agripina estremeceu, mas não perdeu a face:
-- Estou a lavar os pés, meu pai; calquei merda de cão!
-- Essa agora, e então não sujaste as sandálias?!!!
-- Não, senhor, porque já as trazia na mão; estavam-me a apertar nos calcanhares.
-- Vamos aos ovos, rápido. Estás cada vez pior. No próximo Domingo vamos ter de conversar com o Padre Alípio... os dois, ouviste?

   Já com os ovos comprados, pai e filha voltam para casa e, devido ao adiantado da hora, limitam-se a comer uma sanduíche de presunto e a beber um copo de maduro branco. Aquilo não tinha jeito nenhum de almoço de Domingo, mas foi o castigo da menina, por andar com a cabeça no ar. E que fosse rapidamente para a cozinha, acender o forno, que o pão-de-ló tinha de ser feito. Na alma de Agripina, no âmbito deste terrível conflito familiar, agravava-se o mal-estar interior, a tensão nervosa e a ansiedade.


   Para o ignorantão do pai, toda esta instabilidade, esta sensibilidade exagerada de que a filha parecia enfermar, resolver-se-ia com a simples bênção do Padre Alípio. Ainda para mais agora, que a catraia tinha dado um salto brusco no seu crescimento e começava a ficar redondita de formas como a falecida Alzira. “Que Deus nos valha e guarde”! “E tenho de falar com a minha irmã também; às tantas o Padre não entende nada destas trapalhadas da vida; mas que grande porra!...” (...)"

In "As Cores da Alma", 2014, Manuel Bragança dos Santos. https://www.amazon.com/Cores-Portuguese-Manuel-Bragan%C3%A7a-Santos-ebook/dp/B07D9515RC

Nota: Imagem do Google

10 comentários:

  1. Lindo demais e fica como aperitivo para mais e mais ler! abraços, ótimo dia! chica

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  2. Muito bom, este texto. Obrigada ela partilha :))

    Hoje:- Sinto que nas nuvens estão ausentes |Poetizando e Encantando|

    Bjos
    Votos dum óptimo Domingo.

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  3. Lindo texto! E o ribeiro
    Tem a água limpa - divina!
    Os pezinhos da menina
    Transforma o rio em luzeiro

    Qual farol ao marinheiro
    Perdido em plena neblina.
    É que Deus deu a ela a sina
    De ensinar o pai, de inteiro

    Alheamento à ciência
    Do que seja adolescência
    Quando a alma cede à chama

    Do amor que tem ardência
    Que só água é inclemência
    Ao fogo, para quem ama!

    Grande abraço! Laerte.

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  4. rss bem assim antigamente no interior, os padres, que nada sabiam de família, de adolescentes, de vida matrimonial, de educação de filhos eram, no entanto, o 'diretor espiritual das famílias'. Nas cidades grandes também eram meio metidos. Refleti esse belo texto por esse lado. Coisa que chamava muito a atenção.
    Uma ótima semana,
    bjs

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  5. Gosto da sua forma de narrar. Fica-se com vontade de ler mais…
    Uma boa semana.
    Um beijo.

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  6. É realmente um prazer ler o que escreve, seja qual for o tema , agarra-nos e queremos ler mais.
    Tem uma sensibilidade incomum que me toca e não me canso de agradecer a forma subtil como interpreta o que escrevo.
    Um abraço.

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  7. Se assim pretenderem, podem clicar em https://www.amazon.com/Cores-Portuguese-Manuel-Bragan%C3%A7a-Santos-ebook/dp/B07D9515RC
    e terão oportunidade de ler "As Notas Conceptuais Prévias e o 1.º Capítulo deste romance, sem nenhum dispêndio.

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  8. Algumas palavras se assemelham ao nosso portugues.

    http://juliamodelodemodelo.blogspot.com

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  9. Gosto da forma como escreve e descreve os acontecimentos. Não se escreve assim por acaso, acrescentarei. Tem o autor, o Manuel, uma elevada cultura académica, aliada às vivências, suas ou de outros da sua geração, mas que deixaram, inevitavelmente, marcas na sua escrita e talvez, arrisco-me a dizer, no seu caráter.

    A crendice gerava e ainda hoje gera ignorância, tacanhez e obsessão ("a religião é o ópio do povo", afirmou Marx com toda a propriedade, em minha opinião), mas espero que atualmente já não existam pais tão rudes, nem Agripinas, tão dóceis e "obedientes", como as k referiu no seu texto, ah, e padres tão "santos"-rs.

    Beijo e boa semana.

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  10. Olá
    Que belo «aperitivo»! Obrigada.
    Assim que acabar de ler «O sortilégio da vida», quero comprar este livro. Fiquei curiosa!
    Um beijinho
    Mana

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