sexta-feira, 24 de julho de 2020

SÓROR SAUDADE





Agora recordar Sóror Saudade
no mapa cor-de-rosa do destino
     não despe das imagens sem idade
 o rigor das fracturas que confino

                              E falava Flor-Bela da verdade
                              de sofrer esquecida sem atino
                              sozinha sem prover alteridade
                              orgulhosa do nada mais divino

                              Não me cantes das grades da janela
                              estranha diferença que me cinge
                              se sabes não haver coisa mais bela

                              do que ter o sinal tão sem limites
                              de que nenhuma força te restringe
                              na matriz das palavras sem rebites


*Sóror Saudade – A poetisa Flor-Bela Espanca (1894-1930) é a autora da obra, “O Livro de Sóror Saudade”, publicada em 1923.


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sábado, 18 de julho de 2020

SÊ COMO AS AVES





  Se não somos árvores nem arbustos
                            por que razão nos dizes ter raízes
                            não vês as aves sempre tão felizes
                            voando livres soltas e sem sustos?

                            Ei-las em novos ninhos mais robustos
                            nos ventos lúdicos e nos matizes
                            do tempo sem que tracem directrizes
                            nos céus de luz alegres e vetustos

                            E se viver é torcer o destino
                            abre as asas libertas de cadeias
                            na fuga do fado mais assassino
                      
                            e podes bem verter em plenitude
                            para agarrar o Norte já sem peias
                            as pulsões desusadas de virtude

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segunda-feira, 13 de julho de 2020

UM GRITO SURDO DE PANDEMIA




 Bruscos leves os gritos suturados
                              pela febril placidez dos caminhos
                              escancaram medos inacabados
                              afectos sem pontes nem pergaminhos

                              Furtam-se agonizantes e cansados
                              colhidos no torpor de passarinhos
                              não voam mas marcham como soldados
                              para lá das trincheiras de seus ninhos

                              Na volta da tal estrada pandémica
                              só pula desordeira a propaganda
     Céus e Terra fervilham de polémica

                              patética censura desvairada
                              selecção delirante e sem demanda
                              omissão já sem tempo já sem nada


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domingo, 5 de julho de 2020

O INCESTO MAIS INSÓLITO

     


     No dia 3 de Julho de 2020, nos canais televisivos da nossa rectangularidade europeia, veio a lume a notícia de teor espectacular, especular, escandaloso, demencial, do incesto perpetrado, a meio da noite, por um sujeito alcoolizado, na pessoa de sua mãe, de sessenta e tais anos de idade, tendo o acto configurado, alegadamente, a violação consumada. Só devido a este aspecto particular, o filho terá de responder perante a Lei, uma vez que o incesto consensual (+ 18 anos) não constitui um ilícito criminal, de acordo com a lei portuguesa, de resto, como acontece na Natureza.

    Segundo os entendidos na matéria, trata-se de uma ligação entre familiares, de cariz sexual, mais vulgar do que seria de esperar, sendo, aquela a que se alude no primeiro parágrafo do texto, a de mais rara concretização, tal como ocorreu entre Édipo e Jocasta, na tragédia Édipo Rei, de Sófocles. Não tão raro mas, ainda assim invulgar é o incesto praticado por irmãos, e aqui recordamos o amor de CarlOS da MAIA(S) e Maria Eduarda, (re)criado por Eça de Queirós. Já o mais usual – releiam o conto A Princesa Pele-de-Burro –, mesmo que, aqui e ali movido de forma inconsciente, condensada, avessa, compulsiva e mórbida, é o incesto entre o pai frouxo, imaturo e a filha que é levada, a contra-gosto, a ocupar o lugar da mãe, como acontece no romance de M. Bragança dos Santos, “As Cores da Alma”, com as personagens Marcelo e Agripina.

   Contudo, no caso dos irmãos, acontecem, por norma, as   curiosidades sexuais-pré-genitais, os esboços lúdicos (passageiros) de reciprocidade proto-erótica, não devendo estes descambar em viciação-fixação. Estas manifestações de sexualidade pré-pubertária, com a idade, evoluem, rapidamente, depois das pulsões parciais infantis terem dado lugar à genitalidade normal, definitivamente configurada, maturada, no âmbito da relação objectal, onde tem de prevalecer a sensualidade, que o desejo sonda, fora do corpo do próprio.


   Caso contrário, se, no devir cronológico da adolescência, o sujeito mantiver uma fixação às pulsões parciais, manter-se-á estagnado, sem resolução edipiana nem ganhos super-egóicos, no domínio da perversão auto-erótica, na pré-genitalidade, não sendo capaz de crescer afectiva e emocionalmente, não conseguindo nunca lidar com o real do sexo, nem com os outros. Assim, comprometerá a sua identidade, individuação, afirmação, autonomia, inserção e pertença. Conforme Lacan afirmou nos primeiros anos de 1960, o sujeito deve, a um tempo, sentir a necessidade de inclusão e separação, para ser quem é; não permitindo que o ego seja joguete das exigências do id ou das cedências do superego; furtando-se a cavar a infelicidade daqueles com quem se relaciona doentiamente, como no incesto noticiado no dia 03 de Julho de 2020.

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