terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

A CULTURA HIPNÓIDE




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         Nos tempos que vão correndo, e ao contrário do que se possa levianamente pensar, as sociedades ditas civilizadas, globais, vão alimentando, de forma automatizada, robótica, mimética e seguidista, anestesiada e dormente, uma espécie de cultura hipnóide, que tem petrificado as relações sociais, no âmbito de uma intersubjectidade cada vez mais descaracterizada e autofágica.

       Por cultura, entendemos o enriquecimento cognitivo, logo, intelectual, e a consequente, pertinente e legítima prática social das competências adquiridas através desse processo; por cultura percepcionamos ainda a genuína autenticidade dos valores, costumes e património artístico que as comunidades do passado nos legaram; a nossa sensibilidade cultural abarca também os vários códigos, padrões, crenças, assunções, institutos e criações de pertença, identidade e afirmação da nossa vida pessoal e social no seio do tecido comunitário.

      Por hipnóide, julgamos tratar-se de um estado de dormência que afrouxa, diminui ou elimina a capacidade cenestésica do indivíduo, obscurece o ritmo dos processos intelectuais e obnubila a consciência. A cultura, portanto, implica uma prática quotidiana absolutamente esclarecida e cristalina, muito longe de qualquer influência hipnóide. No entanto, o que se passa é precisamente o contrário.

    Fernando Pessoa (1888-1935), nos seus escritos filosóficos, escreveu que (citação de memória) foi a dinâmica da colectividade a recorrer, através da democracia, à coesão social pelo voto maioritário, depois de ter sido gorada a coesão por instinto; ou seja, a democracia surge então como uma espécie de artifício, de habilidade, de combinação sagaz para fazer face à iminente barbárie. Mas não chega. A democracia tem de se reinventar, para que o Estado deixe de ser paternalista e narcotizante, a reboque da espectacularidade- circular-autofágica da estafada sociedade de consumo, “passiva e pardacenta” – na terminologia de Pessoa.

    Com a globalização, a ditadura dos mercados, a uniformização dos comportamentos atitudinais, a padronização das tendências, os esteriótipos, as necessidades artificializadas, as novas tecnologias de informação e comunicação, geradoras, estas, dos mais terríveis delírios alucinatórios, pacificamente aceites e cada vez mais potenciados, através da ilusão descontextualizada, mas, em tempo-real, da ubiquidade, da omnipotência e da omnisciência, a cultura hipnóide e, quiçá, paranóide, geradora do pensamento único e formatado, tem vindo a avançar, de forma viral, tudo minando e contaminando, ante a impotência do próprio estado que, contra todas as expectativas e probabilidades se declara seu adepto.


    Encontramo-nos perante um desolador quadro de dessimbolização, o que configura um evidente retrocesso civilizacional, de clara alienação, já que os indivíduos cada vez escrevem pior, vão lendo menos ou mesmo nada (literatura consensual), comunicam de forma pobremente sígnica e interjeccional, isto é, afastam-se cada vez mais do outro, isolam-se sem se darem conta, deixando assim de viver, de compreender o seu papel existencial e de perceber o que querem para a sua própria vida.

        Resta-nos, ainda assim, lutar contra a cultura hipnóide e apostar nos núcleos de cultura-genuína-resistente, existentes em certos nichos regeneradores-sustentáveis, por enquanto latentes mas promissores, restauradores da nossa identidade cultural, a vários níveis, aguardando apenas quem os manuseie e promova com verdade e honestidade, como forma de contrariar a desagregação e o caos social, quer em Portugal, quer no resto do mundo.


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