(...)
o seminarista Maurício, de novo em férias, dirigiu-se à
Fonte e Lavadouro do Olho D´Água, para abraçar a
mãe e a madrinha Juliana e a prima Rosália, e
cumprimentar, timidamente, as restantes mulheres, naquele espaço
mágico onde a água brota da Terra para vivificar as
almas e os corpos, e as raparigas se orgulham das suas bilhas
redondas, virtualmente capazes de matar a sede ao mais sequioso
desejo (...)
(...)
-- Hoje precisas de descansar
hoje
sim, mas para o dia seguinte, Maurício ficava já
convidado pela madrinha para almoçar em casa desta, no Lugar
do Caneiro, onde não havia lugar a rejeições,
nem a distanciamentos, nem a defesas egóicas, porque o espaço
era aquecido pela consistência dos suportes identitários,
que se estribam nos afectos estruturados pelos objectos reganhados,
que atenuam a fragmentação do Self
e acautelam a deterioração da ferida narcísica
--
Vamos almoçar no alpendre
com
o Sol a aquecer os corações, a mesa foi posta debaixo
daquela cobertura típica, e esperou-se pela chegada do tio
Duarte, e foi aliviado o mecanismo projectivo mais arcaico dos
presentes, porque os egos dos comensais dispensavam agora defesas,
tendo sido tacitamente aceite a reciprocidade das identidades
similares e fraternas, o que fazia erguer uma barreira indestrutível
entre o Self
e
o não-Self
dos componentes desta família ideal
--
Vai fritar os jaquinzinhos*
Zalinha
e
era tudo o que faltava fazer, para que fossem servidos bem frescos e
estaladiços, e as férias assim tinham outro gosto e a
prima Rosália estava no ponto da sensualidade, cujo apelo
erótico impregnava, com o seu impacto vital, visual, viral,
demolidor, o coração dos jovens da Planura, na procura
do desejo que (cor)responda ao seu desejo, no âmbito da relação
com o outro e não porque as necessidades, meramente
instintivas, devam ser satisfeitas, na incrustação do
real puro e duro
--
Esta-se tão bem aqui
os
objectos internos encontravam-se perfeitamente apaziguados e os
externos contribuíam para o equilíbrio desta intermitência
no contexto de maior perigo potencial na vida do seminarista, não
sendo necessárias projecções compensadoras de
recalcamentos frustrados, e o Self
podia
respirar tranquilidade e assunção plena, libertando o
sujeito
--
Já viste como a tua prima está linda?
--
Sim está bonita
Maurício
parecia não reagir à veemência fetichista das
formas proeminentes, apelativas, magnéticas de Rosália,
à materialidade do seu corpo, a esse apelo ensurdecedor e
enigmático da Natureza, à convergência genital,
através da pulsão do desejo vivo e hesitante, (...)
Nota:
*
jaquinzinhos
– carapauzinhos minúsculos
In
“NÃO
SEI SE DE MIM SABEREI ALGO”,
2020 – Romance de Manuel Bragança dos Santos (pág.
99).
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