Os mais recentes executivos (última meia dúzia de anos) têm deixado transparecer a ideia de que se encontram empenhados na implementação de políticas que incrementem a sensibilização actuante das pessoas, no sentido do desenvolvimento de práticas efectivas de leitura, a começar pelos mais novos, ao nível dos primeiros anos de escolaridade. É de louvar.
Um dos programas que se encontra em
marcha (lenta) é o designado Plano Nacional de Leitura que,
como não podia deixar de ser, na linha da musculada
politização do sistema educativo, tem sido orientado de
acordo com um feroz e inapelável centralismo burocrático,
que a ninguém tem permitido um mínimo de discernimento
intelectual, na busca de caminhos e soluções que possam
visar objectivos claros e atinentes.
Embora as coisas tenham enveredado
pelo caminho da redutibilidade, que deixa qualquer ser pensante
magoado e perplexo, ainda para mais porque dois anos após a
sua génese não nos tinha chegado ainda às mãos
nenhum dos livros requisitados, teimámos em usar o cérebro,
para discernir um pouco sobre a temática vigente, tendo em
conta também os repetidos estudos que têm sido feitos
sobre Portugal, no campo da (i)literacia, do analfabetismo, do tipo
de livros vendidos, do abandono e do insucesso escolares, entre
outros. A este respeito, ficamos sempre escalonados nos piores
lugares, comparativamente com outros países, onde assuntos
desta importância têm sido sempre devidamente
acautelados.
Evidentemente que nada disto acontece
por acaso e, ou se começa a remar no sentido das marés,
aproveitando o capital intelectual e humano, principalmente dos
docentes deste país, já que cada vez mais vão
engrossando os sectores populacionais de gente em ruptura iminente,
ou então não será nunca possível fazer
face à lastimável e, de certo modo, condicionada
negligência da generalidade dos portugueses para tudo o que
implique algum esforço físico e/ou intelectual.
É vergonhoso que tal estado de
coisas prevaleça. Não podemos manter indefinidamente
tais níveis de atraso estrutural, civilizacional e até,
aparentemente, mental, em relação aos demais países
europeus. É assim que eles nos olham.
Esta breve introdução
surge na sequência de tudo quanto no nosso país se tem
verificado relativamente à matéria hoje em apreço.
No trabalho que ora preparámos para os presentes, tentaremos realçar
a necessidade imperiosa de se encarar a leitura como algo
manifestamente importante, fulcral mesmo. Ler deverá passar a
fazer parte dos hábitos diários de todos nós.
Quem lê, para além de demonstrar curiosidade
intelectual, abre a mente a novas ideias e conceitos, satisfazendo de
forma saudável e marcadamente abrangente o seu desejo natural
de saber mais, na longa e estruturante caminhada que redimensiona e
enriquece a sua inteligência.
É claro que tudo deve ser
cultivado na pessoa desde o berço e, ler, como é óbvio,
não foge à regra. Aos bebés devem ser
facultados, desde a mais tenra idade, livros adequados à fase
etária em que os mesmos se encontram: livros coloridos, com
texturas úteis ao tacto das crianças, naturalmente
inócuos, para que elas os possam manusear, observar, cheirar,
abocanhar. É este o princípio, por muito que possamos
ficar surpreendidos.
Aos pais, às amas, aos
educadores e aos professores deve ser exigida a tarefa gratificante
de dedicarem às crianças toda a atenção
possível, sem esquecer a importância da leitura, no
âmbito da educação dessas mesmas crianças.
Fundamental mesmo é perceber, por parte dos pais, encarregados
de educação, educadores, professores e população
em geral, o interesse em serem criados contextos, enquadramentos
vivenciais domiciliários e escolares, nos quais as crianças
possam usufruir da sã aprendizagem da vida com sentido. É
este o cerne da questão: as gerações de hoje
precisam, já hoje, de preparar o futuro, sentindo que a vida
vale a pena ser vivida, pelo que compete aos adultos responsáveis,
a inculcação de valores imbuídos de forte
significado estruturante, edificante, de elevação e
eleição.
A resposta a esta questão de
fundo encontra-se na leitura e nos seus efeitos, ao qual se alia o
extraordinário prazer que dela retiramos, grandes e pequenos.
Uns e outros, só através da leitura conseguirão
dar asas à imaginação, sem espartilhos nem
grilhetas, diferentemente, de pessoa para pessoa. Numa sala de cinema
ou junto de um aparelho de televisão, pelo contrário,
as pessoas vêem e seguem apenas as imagens que lhes são
dadas observar e nada mais, de forma directa e monolítica. E
este é só um exemplo.
De pequenino se torce o pepino, isto
é, os hábitos mais saudáveis, como é o
caso da leitura; por isso mesmo devem ser cultivados desde a mais
tenra idade, em toda e qualquer pessoa.
E porque de crianças se trata,
no caso particular da leitura, torna-se imprescindível
adiantar desde já a excelência nunca ultrapassada dos
contos tradicionais, das histórias infantis, importando,
sobretudo, tanto quanto o “statu quo” institucional nos permite,
fazer um esforço tendente a atenuar a ainda deveras
perceptível bipolarização posicional, ao nível
das salas (mal) adaptadas a jardins de infância que, portanto,
coloca as crianças e os educadores, em posição
antagónica, ainda que de forma perfeitamente alheia às
vontades, quer de uns, quer de outros.
Esta observação colhe,
pensamos nós, na medida em que não é possível
urdir, em contexto de sala de aula, a melhor e mais proveitosa teia
da motivação infantil, de forma atabalhoada ou de
improviso, visando retirar efeitos cabais do maravilhoso, quando
pretendemos alimentar uma espécie de manutenção
interactiva do mesmo face ao imaginário infantil. Tiremos
partido então, na medida do possível, da sempre actual
receptividade das crianças aos contos de fadas.
Tanto os contos de fadas como os
contos tradicionais, veiculados pelo educador, em ambiente propício,
preferencialmente contados (não lidos), com os gestos, a
entoação e a mímica adequados, contribuem para
acicatar a imaginação, alterar as mentalidades,
promover a criatividade e, acima de tudo, transportam as crianças
para esse mundo maravilhoso, para lá da mais elementar lógica
racionalista, que condiciona e traumatiza os seres infantis, a braços
com o doloroso processo de maturação.
As crianças têm
necessidade absoluta de viajar constantemente pelo mundo fantástico
das bruxas, das fadas, dos príncipes encantados, dos duendes,
dos gigantes, no sentido de melhor estruturarem o caos interior das
terríveis emoções contraditórias que lhes
perturbam o espírito. Mais ainda: a quantas das nossas
crianças foi já frustrada a oportunidade ímpar
de acreditar no Menino Jesus ou no Pai Natal? Deixem que o formidável
brilho das estrelas do seu imaginário continue a incidir sobre
elas, através da inocência do Capuchinho Vermelho, da
fantástica paixão da Bela pelo Monstro (aqui se plasma
a descoberta da sexualidade), da extraordinária lição
de moral veiculada pelos Três Porquinhos (o bom senso e a
ponderação, como opção de vida), etc..
Facultem-lhes a formidável envolvência da mágica
abóbada de um convívio sem barreiras nem interdições,
para que elas possam educar o gosto, apurar a sua sensibilidade,
preencher o seu espírito de liberdade e aventura.
Hoje, reduzida que ficou a família
alargada de há décadas, sem os avós
(que até vivem mais anos, dizem – estarão todos em
lares?!) para contar as fantásticas histórias da
tradição popular, as lenga-lengas, as trava-línguas,
as charadas e adivinhas, cabe aos educadores e professores esse
desempenho insubstituível, na senda da inculcação
de um conjunto de valores de eleição, como há
pouco referimos, em nome do redimensionamento humano, pessoal e
social, contra as mais absurdas e deploráveis formas de
alienação consumista.
Por último, deixamos à
reflexão dos presentes a questão colocada por Kant:
quem somos? De onde vimos? Para onde vamos? O presente prepara o
futuro ainda e sempre na inevitável inexorabilidade do devir,
mas, se não retivermos a memória do passado, não
poderemos nunca garantir a nossa própria origem. A geração
actual não possui memória, ou corre esse risco, logo
não consegue estender as raízes que não detém;
pode, pois, estar condenada a não ter futuro.
Cabe ao Jardim-de-infância e à
Escola (do 1. º Ciclo do Ensino Básico,
fundamentalmente), preencher este vazio, na tentativa de resolução
dos inúmeros problemas de ordem existencial que assolam as
crianças e as suas personalidades em construção,
conferindo-lhes estabilidade emocional e equilíbrio afectivo,
acautelando uma maturação o mais possível
desprovida de traumas.
Nos contos tradicionais a criança
liga-se ao herói e vai percebendo que o bem deve vencer, deve
sobrepor-se ao mal, àquilo que está errado. Para isso,
o herói passa por imensas peripécias e dificuldades;
tal como na vida, tudo deve ser ultrapassado sem dramas nem recuos,
viajando pela mesma, numa caminhada entre o possível e o
desejável.
Nesta conformidade, aprendamos a
conjugar o verbo contar, no tempo e no modo da exequibilidade,
múltipla e variada, da ponte que pretendemos lançar
entre o maravilhosos e o imaginário das crianças,
alimentando em todas elas o natural, legítimo e imprescindível
direito ao subtil, doce e mágico embalo do sonho, investindo
no riquíssimo capital da sua imensa sede de atenção,
amor, conhecimento e descoberta, visando uma sociedade mais justa,
equilibrada e desenvolvida. Pois bem! Depois de percorridos estes
passos e consubstanciada a consolidação dos seus
efeitos práticos, ler tornar-se-á tão natural e
profícuo como beber um copo de água.
NOTAS:
o FANTÁSTICO
ocorre
quando o seu realismo suscita a dúvida que a lógica não
consegue explicar; a narrativa de carácter sobrenatural cria o
efeito fantástico sempre que hesitamos entre causas naturais e
sobrenaturais;
já o MARAVILHOSO
nunca converge no sentido do real nem do seu contrário, sendo
mesmo encarado naturalmente, como acontece na cultura judaico-cristã.
Em 23 de Junho de 2012
Manuel Bragança dos Santos