terça-feira, 3 de abril de 2018

CRÓNICA FRAGMENTÁRIA




Image result for a rotina narcisista nos ginásios
Imagem do Google


            Em cada dia que passa, a rotina desdobra-se indecifrável para poder ser, por isso mesmo, de leitura impenetrável, sem deixar de obedecer a um inelutável paradigma de repetição, que tece o quotidiano com os velhos fios de um atavismo estafado
            -- Bom-dia, menina Alice
            mais pelo esforço de se tentar legitimar aos olhos da comunidade do que pela consumição de se reinventar ante a modorra repetitiva dos mesmos gestos de sempre,
            -- Menina Alice, entregue este livro, por favor, ao Sr. Ventura; diga-lhe que é da parte do Queirós
            porque as pessoas exigem – e isto a título de exemplo, a atenção imediata da menina Alice, nem que ela esteja ocupada, rotinada, como é o caso
            -- Ah!, fica-lhe tão bem o vermelho
            e o livro em cima do balcão da recepção do ginásio, à espera da atenção da menina Alice [no País das Mil-Ervilhas, (rasteiras ou de trepar)], por agora dirigida para o casaquinho de lã encarnada que a Susaninha envergava naquela manhã gelada de Primavera
            -- Deixe ficar o livro, Sr. Queirós
            a fazer pensar duas vezes os utentes da Catedral-do-Esforço-Físico-Voluntário-não-Remunerado, antes de optarem pela rotina dessa mesma dinâmica narcisista diária ou por outro qualquer culto menos exposto e agasalhado
            -- Vou subindo, então, obrigado
            que isto de deitar cedo e cedo erguer para ir ao ginásio e voltar, significa despir a roupa e vestir o pijama, na véspera; despir o pijama e vestir a roupa, logo cedo pela manhã; já no ginásio, despir a roupa e vestir o fato de treino; depois do exercício, despir o fato de treino, tomar banho e vestir a roupa
            -- Bolas, menina Alice, que rotina enfadonha
            mas é claro, nus é que não podemos andar, que isso é que precipitaria as constipações e as gripes e as pneumonias e outras manias voyeuristas ou não, quem sabe, para além da necessidade de acautelar as miudezas pendentes, nem é bom pensar
            --  Não querem lá ver o desconchavo?!
            que a Susaninha chama-se assim, mas já tem 50 anos bem medidos e lembra-se do 25 de Abril, mas não tem memória da morte de Oliveira Salazar, o tal das rotinas, da modorra e do autoritarismo impertinente, e que deu uma queda fatal em 1968 e todos pensaram que tudo ia mudar, mas não. Permaneceu o atavismo requentado, fastidioso, revigorado por Marcelo Caetano até 1974. Bem, ainda hoje (às Centenos) permanece muitíssimo desses tempos de tão mau dano. E já lá vão 44 anos. E o Queirós a contar o tempo e as flexões e os agachamentos e as elevações, e a espantar a tensão acumulada, também pelo veste-e-despe inevitável, a valer muito mais a pena, pelo contrário, quando se deita com a filha mais nova do velho Acácio Lapa. A rapariga, de nome Jacinta – o pai fez gosto, por causa das aparições de 1917, em Fátima – tem a idade da nossa democracia rectangular; encontra-se  mais ou menos liberta das ideias quadradas do incontornável Acácio; exibe ainda um corpo de redonda sensualidade e consegue cativar o Queirós com a sua natural envolvência amniótica, prenhe de espontânea afectividade e telúricos orgasmos. Ora, tudo isto, se querem saber, não é rotina, não senhor, é auto-estima, entrega e plenitude
            -- Sr. Queirós, o amigo está em grande forma!
            ou não fosse o Queirós assíduo e empenhado, sempre a pensar na mais nova do Acácio, pois claro, que a única coisa que nos faz sentir acompanhados face ao vazio e à angústia existenciais é, sem sombra de dúvida, O AMOR.
           
           

Sem comentários:

Enviar um comentário