quarta-feira, 29 de maio de 2019

COMO CANTOU CAMÕES


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Como cantou Luís Vaz de Camões
“Perca, quem te perdeu, também a vida”
pois viver sem achar mais ilusões
é perder sem jogar a tal partida

Contemplas a beleza dos faisões
do fardo da subida tão perdida
sem ganhar de rever os furacões
erguidos contra nós tão sem medida

Ao provar o sabor acre do sonho
por não ser sossegado no desejo
de cumprir mil e uma fantasias

exibes o teu semblante tristonho
distante na torre do castelejo
fugindo dos cultos em que não crias



NOTA: O 2.º verso do presente soneto 
           foi excisado da Lírica Camoniana.
           (Edição de Lobo Soropita, 1595)





domingo, 26 de maio de 2019

ENTENDER O SOCIAL


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   Grosso modo, o social (a sociedade) pode ser interpretado, desde que o homem se tornou sedentário, inicialmente para que fosse possível o cultivo da terra, como um simples (antes) ou sofisticado (depois) exercício dialéctico de poder entre os seus membros constituintes.

   Formado por classes (sociais), determinantes da dinâmica relacional grupal, o social progride ou regride em função da diversidade dos tipos de jogos de poder que se vão estabelecendo num dado período histórico-filosófico, e dos resultados que daí advêm para as partes em contenda.

   Caracterizando-se a espécie humana pela sua eterna insatisfação e angústia existencial – não posso precisar se existem, ainda hoje, tribos de caçadores recolectores em estado rigorosamente virgem, isto é não contaminadas pela dita civilização –, assim, o homem tem vindo a cavar, de forma ansiosa, desastrosa e contraproducente o seu próprio destino de total desagregação irreversível.

   Marx e Engels (1848) julgaram poder apagar a terrível história já vivida pela humanidade, ignorando a persistente transmissão das nefastas influências do passado, via inconsciente colectivo, transgeracionalidade, genealogia, hereditariedade genética e simbólica, etc., propondo-se e propondo começar tudo de novo, através do seu excelente, mas impraticável Manifesto Comunista, que, debruçando-se sobre a Revolução Industrial, preconizava a sociedade sem classes, o fim da exploração do trabalho pelo capital, entre muitas outras coisas utilíssimas e socialmente niveladoras.

   Intrinsecamente arreigadas no indivíduo, sendo este, inelutavelmente ambicioso, territorial e agressivo, predador por excelência, senão o maior dos predadores, tudo fazendo, consciente ou inconscientemente, no sentido de cumprir, ao longo da História, esta sua idiossincrática caracterologia, difícil seria mudar fosse o que fosse. Contudo, esta tentativa valeu pelo estrondoso murro na mesa das atrocidades e das injustiças, coisa que hoje não se vê acontecer na luta política e social.


NOTA: VÁ VOTAR; SEJA RESPONSÁVEL... Se é português em Portugal, hoje - 2019-05-26.


quinta-feira, 23 de maio de 2019

NÃO TENTAS PERCEBER



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AUTO-RETRATO DE FRIDA KAHLO



Não tentas perceber motivações
das que só galopam corcéis dantescos
nem procuras saber por que razões
se cultivam costumes vampirescos

Tecer parafrénicas ilusões
constranger-se às visões dos arabescos
é forjar autofágicos baldões
é traçar acasos rocambolescos

Invocar os enganos que resistem
ficando sem ficar nessa presteza
não mostra sopesar já que persistem

no rosto que sorrindo de tristeza
do logro das herdades que consistem
no tal lavar de mãos com tibieza

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segunda-feira, 20 de maio de 2019

A PAZ D`ALMA

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   A paz d´alma é uma espécie de sensação de apaziguamento espiritual, a que começaram por fazer referência elogiosa os filósofos (epicuristas, estóicos e cépticos). Epicuro (341-270 bC) afirmou mesmo ser esse o caminho da felicidade, desde que o indivíduo não fosse atormentado por desgostos, penas ou dores – ataraxia, palavra grega que significa ausência de perturbação. E Epicuro acrescenta não poder haver intermitências entre o equilíbrio da alma e do corpo, pelo que não recomenda apatias ou paixões, para que a liberdade seja possível.

   O céptico Pirro (360-270 bC) é de opinião de que sem a suspensão do juízo (nem negar, nem afirmar), a ataraxia não ocorre. Mas, com aquela evitam-se as preferências, as escolhas e as confrontações de ideias; separa-se o que depende de nós e o que nos é “imposto” de fora, como as paixões, sendo estas afecções ou alterações da alma, conforme Aristóteles (384-322 bC). Assim, através da racionalidade, livramo-nos das perturbações. Mais, ainda: a paz d`alma suplanta, moralmente, qualquer vivência empírica.

   Mas afinal, a que espécie de liberdade aludem estes filósofos?! Não estarão todos eles a fomentar, muito mais, o cinzentismo, a inércia, o comodismo, a neutralidade, e muito menos a liberdade em sede de respeito pela liberdade alheia? Ou será que a suspensão do juízo é pura reflexão e isenção?

   Evidentemente que, não deixando de ser uma abstracção, a liberdade hoje em dia tornou-se extremamente complexa e de difícil interpretação e usufruto, na sociedade (Ocidental) pautada pela Paramodernidade – séc. XXI (progresso disruptivo, redutor, distorcido, esquizo-paranóide onde ocorre um processo social autofágico delirante)*, e onde grassa a ganância dos mercados, a espectacularidade mórbida dos media, o pensamento global pré-formatado, o niilismo hedonista, o vazio existencial e a queda dos valores, a iliteracia, o consumismo obsessivo, compulsivo e fátuo, a corrupção e o esmagodor peso dos impostos.

   Bem, se calhar, a tão ansiada paz d`alma só será tangível, artificialmente, através da farmacologia e da toma de neurolépticos – ataraxia medicamentosa.


NOTA: Paramodernidade – séc. XXI* - esta designação conceptual é nossa. Pós-modernidade e hipermodernidade não potenciam, em termos linguísticos, o alcance referencial adequado.

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sexta-feira, 17 de maio de 2019

SE DE VOAR PUDESSE...


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Se de voar pudesse ser contigo
tão perto dos inventados instantes
não seria ninguém em quanto digo
desdizendo das sortes mais distantes

Às voltas sem regresso nem abrigo
vais soltando os cabelos como dantes
como se fossem searas de trigo
vergadas ao desejo dos amantes

Será que já levaste de vencida
sem contar os segredos mais vazios
os ganhos e perdas de quem olvida

as imagens das velas sem pavios
ou preferes fingir que só na vida
é melhor divagar sem desvarios


quinta-feira, 16 de maio de 2019

O ANÚNCIO



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Juvenal Garatuja
Coimbra Sul
Telefone: 0000000

Ao Jornal de Notícias
Rua de Santo Ildefonso (?!)
PORTO

Assunto: Anúncio de 31/01/1970, com carta ao JN ao n.º 000


Ex.mª Menina

Em resposta ao anúncio em epígrafe, começo por lhe dar parte dos seguintes dados:

-- Nasci na década de 50 do século XX;
-- Vivo com a família;
-- Sou universitário, com cultura, provavelmente, acima da média;
-- Sou dotado de personalidade forte e salomónica;
-- Gozo de uma vida estável, "autónoma" e "independente";
-- Pratico desporto assiduamente;
-- Leio, estudo e escrevo diariamente;
-- Adoro o mar em particular e a natureza em geral;
-- Não enfermo de qualquer tipo de vícios;
-- Sou profundamente romântico;
-- Ajo com natural pragmatismo;
-- Pretendo um namoro prévio para mútuo conhecimento, com vista a um relacionamento sério e saudável.

Nota 1: Junto foto (Verão 1969), para melhor documentar a presente resposta.
Nota 2: Caso decida ligar-me, sugiro que o faça entre as 18 e as 19 horas; já estou em casa e o meu pai ainda não.

De momento, é tudo. Fico na expectativa da decisão que possa vir a tomar.
Os meus respeitosos cumprimentos,


_______________

Juvenal Garatuja

terça-feira, 14 de maio de 2019

A AGRESSIVIDADE ANIQUILA


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   Os afectos de aversão (Adler) traduzem-se, em termos dinâmicos (motores), na agressividade, na agressão, na perseguição, assumindo o rosto da ira, da cólera e da hostilidade. Os afectos dependem da carga energética ligada à representação, para o bem ou para o mal, segundo Freud, e são úteis para a sobrevivência do Homem, dentro de determinados parâmetros. Como se compreende, quando comparada à mulher, a constituição física do homem (regra geral) potencia, no âmbito da agressividade, maiores estragos, quer em termos dinâmicos, quer económicos.

   Essa consciência afectiva (sentimento emocional), que Freud designou de “quantum de afecto” (energia pulsional) que investe as representações é: qualitativa, de acordo com a oposição dinâmica de forças) e quantitativa (intensidade energética – economia). “Cultura e suas Desvantagens” (1930) é a obra onde este mestre qualifica a agressividade como “um impulso nato e autónomo do homem”. Assim, em sociedade ou na família, quanto mais fraco é o próximo, maior é a tentação de o agredir e perseguir (bullying, violência no namoro ou doméstica, abuso de poder, assédio moral e prepotência laboral), dizemos nós. Mas há mais:

  Como se trata de um sentimento primitivo (irracional/reptílico) de inimizade e confrontação, torna-se tanto mais destrutivo e aniquilador, quanto mais avança o progresso técnico e cultural, uma vez que este é uma faca de dois gumes, capaz de reactivar (redimensionar/ampliar) a idiossincrasia do homem e de o dotar, também, de instrumentos auxiliares de destruição maciça e massiva, ameaçando, permanentemente, de ruína, a família, a sociedade e a sua única casa planetária (Konrad Lorenz, 1903-1989).

   Freud defendia ainda que, perante tamanha carga emocional, o superego remete-a para o ego onde se despoleta a agressividade e a autodestruição, isto é, a neurose e a psicose. É assim, ainda hoje, com as personalidades psicopáticas, nas crises hipomaníacas e na demência aterosclerótica; nas depressões e na esquizofrenia, com excepção das violentas birras típicas das crianças de dois anos.

NOTA 1: Os cientistas actuais apontam o mesencéfalo do homem, na zona média cerebral, com diencéfalo (tálamo e hipotálamo)cérebro reptílico, regulador das funções vitais básicas, como nos répteis –; e córtex cingulado no topo envolvente – sistema límbico, onde se alocam os sentimentos ou afectos primários dos primeiros mamíferos.

NOTA 2: “Recentemente” constituiu-se o neo-córtexsede das funções cognitivo-afectivas superiores complexas, capazes de pensamento e linguagem e de diferenciar emoções. Contudo, o cérebro reptílico continua actuante.

NOTA 3: Bibliografia revisitada:

Damásio, A. (2013). O Sentimento de Si – Corpo, Emoção E Consciência. Temas e Debates. Círculo de Leitores. Lisboa.
Goleman, D. (2006). Inteligência Emocional. Revista Sábado. Espanha.
Hell D. (2009). Depressão – Que sentido faz? Sete Caminhos. Lisboa.
Mlodinow L. (2014). Subliminar – Como o Inconsciente Controla o Nosso Comportamento. Marcador Editora. Lisboa
Sempé, Jean-Caude et al (1969). A Psicanálise. Edições 70. Lisboa
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sexta-feira, 10 de maio de 2019

DÉJÀ-VU?!... NEM SEMPRE


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   Há muito quem confunda o conceito de Déjà-vu com a renovada constatação actual de vivências já experienciadas no passado. O senso-comum generalizado, e a falta de formação e critério de que enfermam certas criaturas dos mass-media, têm atraiçoado o seu devido papel pedagógico-didáctico. Assim, ao invés de se apoiarem na informação correcta e ponderada, têm seguido pelos ínvios caminhos da já habitual, mas impertinente, ignorância e ingenuidade.

   O conceito de Déjà-vu refere-se apenas à complexa ilusão do já visto, sem que nada, de facto, tenha ocorrido no passado. Friedrish Doucet (séc. XX) refere tratar-se de recordações estranhas, no âmbito de uma fantasia inconsciente, de um estado onírico ou de um sonhar acordado, enquadrando pessoas, objectos e situações, afinal, inexistentes. Não, não são alucinações (percepções sem objecto), para as quais colaboram, neste caso, os sentidos.

   Outros autores falam em perturbações de memória (paramnésias); pressentimentos compulsivos e ilusórios de que algo, hoje, se repete – como no passado – e, claro, nos diz respeito, conseguindo accionar uma certa ansiedade, face à perplexidade que a sua novidade e surpresa causam.

   Clarificando um pouco a ideia de paramnésia, dá-se conta de que os entendidos apontam para uma desordem mnésica, onde a memória se apresenta desvirtuada, lacunar, confabulada, tecida ao sabor da compensação ilusória das frustrações pessoais dos afectados.

   Por último, importa aludir à ansiedade fóbica associada à perda da consciência identitária e circunstancial, pois estas são susceptíveis de indução de experiências de Déjà-vu, bem como as manifestações esquizofrénicas, tendencialmente passíveis de criar desorientação, ideias ilusórias (temporalidade desenquadrada) e sentido premonitório.

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https://www.youtube.com/watch?v=YCs6Tpd5sFQ



terça-feira, 7 de maio de 2019

A ANÁLISE TRANSACCIONAL

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   Falar de análise transaccional (não confundir com transicional – Winnicott) é recordar o psiquiatra canadiano Eric Berne (1910-1970), e a crença por si defendida de que o comportamento humano se tornaria mais claro e perceptível, ao invés da visão psicodinâmica de Freud. Berne, no âmbito da sua teoria da personalidade e da psicoterapia a ela inerente, considera, para tal, os três estádios presentes em cada ego: pai, adulto e criança. Estes, funcionariam como dados de um jogo simples de trocas sociais e familiares – The Games People Play, livro escrito em 1964.

    Berne via o sujeito como uma espécie de autómato, dotado de um inconsciente pouco significativo, reagindo no imediato, de forma previsível, sem problemas de maior. Assim, enquanto terapeuta, estabeleceu com os enfermos uma relação transaccional, acordada, conveniente e conivente, onde era possível reactivar a criança no adulto, pela força das palavras, eliminando os estádios ego conscientes.

  A indução deste pretenso autoconhecimento invocado resultaria pouco, provavelmente, por ser efémero e superficial, embora, alegadamente, procurasse perceber, em contexto de clínica contemporânea, a toxicidade das formas de pensar, os comportamentos intersubjectivos relacionais dos sujeitos, as suas concomitantes frustrações interaccionais, às quais se comprometia dar a resposta intuitiva cabal, seleccionando os conteúdos mentais saudáveis, adquiridos ao longo do tempo, pelo vivido emocional de cada um.

    Curiosamente, Bernie repete-se e repete Freud, Klein, Bion e Lacan, para não referir outros, quando preenche a personalidade do sujeito a partir de conteúdos já burilados por aqueles mestres. Vejamos: O estado de ego pai, o estado de ego adulto e o estado de ego criança não são mais do que o grande Outro de Lacan, a norma, a ordem, o sujeito obstruído de desejo; o superego, a representação dos interditos, a consciência moral de Freud; por último, recordem-se os ensinamentos de Klein e Bion – a identificação projectiva (negativa ou positiva), o apaziguamento interior, a interacção continente (mãe) - conteúdo (bebé) de Bion, a relação dinâmica entre as posições esquizo-paranóide e depressiva (Klein), visando o crescimento e a mudança.

Nota 1: Respira-se aqui, também, algo (para pior) de Jacob Levy Moreno (1889-1974) e das suas condutas terapêuticas de inserção.

Nota 2: De Khalil Gebran (1883-1931), lemos (2007) que “a base clara da Análise Transaccional - enquanto psicoterapia - é escassa e de baixa qualidade."



segunda-feira, 6 de maio de 2019

SUJEITO E OBJECTO



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Amar é para quem pode dispor 
de tantas e distendidas canseiras
aferidas exactas sem asneiras
finuras selectivas sem rubor

Nos poemas surgidos com ardor
arrefecem lirismos sobre as eiras
nos campos nas adegas nas esteiras
das ruínas que jazem sem fulgor

 Ser a coisa de tudo perceber
 de não saber ficar só por partir
 é só t(r)ocar o tempo já sem ver

 ser bem melhor pensar em assumir
 a sentida sombra por desprazer
 no lugar que nos tolhe de sorrir 

quinta-feira, 2 de maio de 2019

FADAS?!


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Por que são no seu leito de manhã
as palavras despidas de vontade
se não ousam quedar-se em terra chã
num vaivém desgarrado e sem idade

Se dispersa recuas tola e vã
regressas pelo menos à verdade
ausente na camisola de lã
mas refém dessa tua hostilidade

Contudo não me venhas com miragens
nem apagues o fogo das latadas
abertas e fechadas nas passagens

dos caminhos t(r)ocados pelas fadas
disfarçando mil brilhos e ramagens
se são elas que dormem acordadas

quarta-feira, 1 de maio de 2019

A RAPARIGA DOS RUBROS SILÊNCIOS



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No campo respira-se o ar lavado dos grandes espaços abertos; escuta-se a imperceptível musicalidade do vento, o som melódico dos regatos, o coro dos passarinhos, a subtil leveza das colinas; no campo sente-se a envolvência aveludada dos prados e o sedoso toque da brisa

No campo ainda há quem fale com a terra e oiça, com espanto, o silêncio dos frutos. No campo vive Laurinda, a rapariga de todos os encantos e desejos. Ela viaja pelo sonho, sob o sol do seu coração ardente, como fazem os rios sem margens

Toda a aldeia está lá, no prado das cerejeiras vergadas pelo ímpeto dos frutos carnudos e vermelhos. A colheita é sôfrega, sensual, extenuante. Os gigos enchem-se em torno dos troncos. Laurinda já não sonha, e refugia-se no silêncio, respondendo, triste, magoada mas decidida, pela incumbência da natureza. Vai dividindo a atenção, também, com um outro gigo colocado muito próximo de si. No seu interior, embrulhada numa manta fresca e limpa, dorme, inocente, a filha

Desde a última colheita que Martinho não mais procurou Laurinda. Esta, vive de coração apertado e chora às escondidas. Contudo, não dá a face, enfrenta a adversidade. Doce, bela e jovem, só através dos seus grandes olhos verdes deixa transparecer a angústia que lhe dilacera a alma. Faz hoje dezoito anos, mas ninguém se lembra do seu aniversário

Pelo lusco-fusco, são estendidas séries de lâmpadas entre as cerejeiras e a ramada lateral; não faltam os petiscos habituais e o vinho regional... e a música tocada de improviso. No centro, sob o brilho prateado das estrelas, os pares rodopiam ao som da concertina; no círculo dos mais velhos as crianças buscam o aconchego das mães

De repente, Laurinda ergue-se com o bebé ao colo; discreta, entra na roda, e ensaia uns passos de dança. Todos lhe sorriem e lançam gracinhas à criança. Agora, a concertina rasga a noite com o seu gemido pungente e nostálgico

Martinho, então, aproxima-se resoluto, entra na roda, envolve a rapariga e a filha num abraço largo e sentido, beijando a jovem com carinho.

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