segunda-feira, 28 de outubro de 2019

A QUE SE OBRIGA O SUJEITO


   Quem vive num estado de direito democrático, enquadra-se, em termos de estatuto e papel, num conjunto de direitos e deveres que fazem parte do seu quotidiano, e aos quais se não deve furtar – os segundos –, nem desprezar – os primeiros, sob pena de se automarginalizar e, por motivos de atropelo (ilícitos) dos vários códigos reguladores da respectiva sociedade, vir a ser sancionado.

   Sendo assim, há, até, quem prescinda dos seus direitos (quantas vezes, por ignorância), mas, pelo contrário – e pensando agora nos deveres –, o desconhecimento da lei não iliba quem a não cumpre. Logo, os deveres constituem, inalienável e eticamente, algo a que se obriga o sujeito, o indivíduo, o cidadão, enquanto entidade reconhecidamente moral e em perfeita fruição das suas faculdades mentais.

   O mesmo vale, também, no âmbito da interacção pessoal e social e no quadro institucional mais lato dos contactos de determinadas comunidades de indivíduos.. Contudo, mutatis mutandis, pode discutir-se até que ponto o cumprimento de uma obrigação moral constitui uma necessidade imposta ou naturalmente determinada... Esta, é mesmo levada a cabo; já, aquela, pode, mesmo, ser ignorada.

   Como se escreveu atrás, nem todos usufruem dos seus direitos, seja por ignorância, falta de sentido de oportunidade ou discordância (?!!), ou, então, por negligência, inércia ou desleixo. Já no que se refere aos deveres (morais), estes podem ser cumpridos, ou não, caso sejam aceites e, para isso, devem, primeiro, ser interiorizados. Mas, para que tal aconteça, convém perceber a sua razão de ser, dado esta revestir sempre móbiles subjectivados:

 Estes podem abarcar implicações sociais, doutrinárias, políticas, axilológicas, entre outras. Ora, nestes casos, o sujeito, o indivíduo, o cidadão terá sempre a prerrogativa de avaliar, ponderar e, finalmente, decidir com pragmatismo e sentido de liberdade, sem, no entanto, beliscar ou comprometer a liberdade do(s) outro(s).


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sexta-feira, 25 de outubro de 2019

A DEVASSA SOCIAL


   No nosso “Admirável mundo novo” (Aldous Huxley, 1932), repleto de inovações tecnológicas, de comodidades e facilidades, de automatismos e do pan-acontecimento-conhecimento-em-tempo-real, tudo estaria bem, já que o progresso é o progresso e, sendo assim, apresenta-se o mesmo como reforço, resposta e tónico, aparentemente compensador da ambição desmedida da espécie humana. Àquela, junta-se a territorialidade e a agressividade para, no seu conjunto, gerarem a artificial necessidade de acumulação irracional de bens e vantagens de todo o tipo.

   Nada disto se passava, claro, nas tribos virgens de caçadores-recolectores ainda existentes no globo nos primórdios do século (XX) passado (Malinowski, 1884-1942, cit por Reich, 1897-1957). Estas foram desmanteladas, exploradas e aniquiladas pelo braço “civilizador” europeu... embora a História se tenha vindo a repetir desde os alvores da humanidade. Contudo, nos dias que correm, a sofisticação e a sub-repção dos impérios emergentes tem vindo a ultrapassar todos os limites do inteligível e do suportável, visando o controlo, punição e exploração generalizada dos cidadãos e, mais do que isso, impondo os seus métodos às nações mais frágeis e economicamente dependentes.

   O preço a pagar pelo actual estado das coisas é elevadíssimo. Retendo que, na longa caminhada, já efectuada pelo Homem, entre a natureza e a sociedade, foi necessário interiorizar códigos de conduta mediadores dessa passagem, pautada por um conjunto de sistemas simbólicos, estes passaram de geração em geração, funcionando como facilitadores da integração social. Configuraram, então, a consciência moral do indivíduo e a sua representação dos interditos (o SuperEgo); o sujeito obstruído do desejo evitaria a transgressão dos limites (Freud, 1856-1939 e Lacan, 1901-1981).

   Mas falávamos do preço a pagar: o organismo e o cérebro humano não suportam tanta excitabilidade e pressão; tamanha coacção e exigências; tão aberrante contraciclo biofisiológico, e reage através do abaixamento do nível mental (Pierre Janet, 1859-1957), obnubilando o estado regulador e orientador da consciência, desfasando e desintegrando o sujeito da cultura. A ansiedade não só inibe o pensamento, mas, paralelamente, faz disparar o mesmo; transmite uma sensação de entorpecimento, de abulia, de vazio, de ausência do espaço e do tempo, de conturbação alienante. E isto, sem referir a escravidão a que nos quer sujeitar a dominação escópica, optimizada pelo panopticismo oculto que tem vindo a crescer de forma inexoravelmente galopante (Quinet, 2019). Voltaremos a este assunto!


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segunda-feira, 21 de outubro de 2019

NO RIGOR DOS CAMINHOS


              No rigor dos caminhos desbravados
              nascemos sem pensar em tal ventura
              para sermos sentidos como dados 
              mal-jogados de forma prematura

              Das afrontas dos rostos mal-amados
              que dizer dos umbigos em cesura
              do viés tão fendido dos seus brados
              do tempo sem razão nem cobertura

              Da forte fragilidade do vento
              no restolho das campos já ceifados
              dos dilemas nascidos ao sol-pôr

              no desenho das velas em tormento
              o sémen de novos sonhos doirados
              surgirá por acaso dessa dor ?

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segunda-feira, 14 de outubro de 2019

DESORDENS E DISFUNÇÕES DA LIBIDO


    Ao contrário dos restantes mamíferos, que se regem pela intermitência cíclica da fixação dos instintos (cio), para assegurar a perpetuação das espécies, no ser humano o instinto é fixo, mas continuado. Contudo, como a humanidade acedeu à cultura (simbólico) e se rege pelas interdições que a mesma impõe, o instinto é latente e é polarizado pela pulsão do desejo, sempre vivo mas errático e hesitante. Este é captado pelo imaginário-simbólico-inconsciente de cada um, pelo que, em sede de conjugalidade, se manifesta de forma muito pessoal e especificamente caracterológica.

    Para uma melhor percepção destas singularidades, vamos comparar o instinto à âncora dum veleiro (pessoa), e o desejo às velas do mesmo; o imaginário-simbólico-inconsciente seria aqui representado pelos caprichos do vento, das correntes e marés. Nesta conformidade, vamos aceitar os desvios da sexualidade simplista, situando-os no campo-largo dos preliminares que preparam a ritualidade corporal e afectivo-emocional e apontam para o objectivo final do(s) orgasmo(s) de ambos os cônjuges, em contexto de convergência sexual-mútua-relacional-dual. Excluiremos, porém, a obstinação mórbida e fixa dos comportamentos sexuais lesivos do carácter, da sensibilidade, da liberdade e da integridade física e moral dos parceiros. Esta patologia tem o nome de perversão – desejo tsunâmico.

    Este tipo de desordens inconscientes, portanto, não levam os doentes a procurar ajuda clínica, ainda que o cônjuge se queixe, proteste, reclame ou mendigue uma alteração de comportamentos, pois nada se passa, afinal, sendo a culpa sempre do(a) outro(a). Também acontece – raramente – que estes desejos mórbidos possam ser esforçadamente reprimidos, para explodirem por desinibição alcoólica, por desequilíbrio esquizóide ou por pressão demencial. Em termos sociais, estes transtornos podem comprometer a liberdade e segurança dos cidadãos.

   Nestes casos, o sistema de saúde e o sistema de justiça devem avaliar a impudência perpetrada sobre as pessoas e decidir da inimputabilidade ou não do autor dos desmandos; pelo internamento periódico deste e pela sua cooperação, se se verificar a obsessão compulsiva dos seus actos; finalmente, e em resultado desta parceria, deve ser possível a aplicação de uma sentença ponderada e proporcional ao enquadramento clínico e jurídico dos factos ocorridos.

    Sempre que não está em causa o coito propriamente dito, pode verificar-se o delírio objectal, o fetichismo, a bestialidade (zoofilia), a distorção do objectivo (voyeurismo escopófilo, exibicionismo, travestismo, sado-masoquismo, etc.), que têm sido considerados como sendo regressões desviantes da maturação sexual-afectivo-emocional, devido a traumas ocorridos na 1.ª infância. Aqui, a transgeracionalidade, à qual se juntam papéis parentais disruptivos ou inoperantes, bem como o processo identitário torpedeado podem estar na origem destes desvios ou perversões, conforme a sua dinâmica e intensidade.

    Por último, as disfunções que advêm da ansiedade profunda e continuada ou da culpabilidade que radica no pavor de vir a falhar no protagonismo do acto conjugal, traduzem-se, por exemplo, na dispareunia (coito doloroso), na frigidez, na ejaculação precoce ou mesmo na mais redutora impotência. Tudo pode ter solução, embora seja mais simples tratar os problemas considerados mais leves (?!) do que os que têm origem psicológica profunda e que se enredam em complexos traumáticos inconscientes.
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quinta-feira, 10 de outubro de 2019

ÉS ASSOMBROSA (Sem Tatuagens)



                   És assombrosa diva sensual
                   maravilha fatal disse Camões
                   tágide tu serás de pedra e cal
                   se vieres sem tenças nem punções

                   Desejo sedutor e esponsal
                   fruta-tez de lânguidas fruições
                   rubor acetinado e visceral
                   pura cútis de tantas oblações

                   Que nos queres dizer tu afinal
                   se te mostras oculta e sem carisma
                   como tela pintada tão soturna

                   nos ecos desse frémito tribal
                   repetido pelo modal sofisma
                   do nada que te torna taciturna?



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sábado, 5 de outubro de 2019

POR QUERER VIVER...


   "(...) Uma hora depois, o pai, a um tempo irritado, intrigado e preocupado, meteu pés ao caminho na direcção da casa da irmã Albertina. Estupefacto, avistou a filha junto do pequeno ribeiro da aldeia, com os pés metidos na água:

-- Estás maluca, rapariga?! O que é que estás aí a fazer?! Então, os ovos?!
Agripina estremeceu, mas não perdeu a face:
-- Estou a lavar os pés, meu pai; calquei merda de cão!
-- Essa agora, e então não sujaste as sandálias?!!!
-- Não, senhor, porque já as trazia na mão; estavam-me a apertar nos calcanhares.
-- Vamos aos ovos, rápido. Estás cada vez pior. No próximo Domingo vamos ter de conversar com o Padre Alípio... os dois, ouviste?

   Já com os ovos comprados, pai e filha voltam para casa e, devido ao adiantado da hora, limitam-se a comer uma sanduíche de presunto e a beber um copo de maduro branco. Aquilo não tinha jeito nenhum de almoço de Domingo, mas foi o castigo da menina, por andar com a cabeça no ar. E que fosse rapidamente para a cozinha, acender o forno, que o pão-de-ló tinha de ser feito. Na alma de Agripina, no âmbito deste terrível conflito familiar, agravava-se o mal-estar interior, a tensão nervosa e a ansiedade.


   Para o ignorantão do pai, toda esta instabilidade, esta sensibilidade exagerada de que a filha parecia enfermar, resolver-se-ia com a simples bênção do Padre Alípio. Ainda para mais agora, que a catraia tinha dado um salto brusco no seu crescimento e começava a ficar redondita de formas como a falecida Alzira. “Que Deus nos valha e guarde”! “E tenho de falar com a minha irmã também; às tantas o Padre não entende nada destas trapalhadas da vida; mas que grande porra!...” (...)"

In "As Cores da Alma", 2014, Manuel Bragança dos Santos. https://www.amazon.com/Cores-Portuguese-Manuel-Bragan%C3%A7a-Santos-ebook/dp/B07D9515RC

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quinta-feira, 3 de outubro de 2019

O DOENTE BIPOLAR



   Quando se faz referência à humanidade e aos afectos que a devem ligar, importa falar do cérebro para lembrar o papel ancestral do córtex cinguladosistema límbico, onde se alocam os sentimentos ou afectos primários dos primeiros mamíferos; e do neo-córtexsede das funções cognitivo-afectivas superiores complexas, capazes de pensamento e linguagem e de diferenciar emoções. Mas, o acesso à cultura e à estrutura simbólica que a consubstancia tem tido efeitos, mais ou menos disruptivos, que têm redundado, ao longo do tempo, em perturbações e alterações que distorcem a afectividade em geral e, em particular, a sanidade mental.

   Embora a moderna psiquiatria, nos alvores do século XX, tenha balizado diferenças entre as perturbações afectivas generalizadas, que oscilam entre a tristeza e a euforia – Valentin Magnan (1835-1916) apelidou o fenómeno de “loucura intermitente”; e Emil Krapelin (1856-1926) tivesse oposto a este as demências precoces (paranóia, hebefrenia e catatonia); foi Eugen Bleuler (1857-1939) quem, a partir desta instância nosográfica, as designou de esquizofrenia. Pensamos que esta especificação é útil nesta fase da abordagem da matéria em apreço. Assim, as perturbações afectivas de carácter geral, note-se, ao contrário da esquizofrenia, não derrotam, irremediavelmente, nem a personalidade nem o intelecto do indivíduo.

   Contudo, convém lembrar que este tipo de afecções, de certa forma, acompanhará o doente pela vida fora. A recorrência verificar-se-á através de uma variabilidade e periodicidade irregulares, podendo configurar bipolaridade e unipolaridade. Nestas, o quadro habitual é a depressão; naquelas, a síndroma integra, alternadamente, crises maníacas e crises depressivas. Ainda assim, não esqueçamos que, quer num caso quer no outro, a qualidade de vida do doente e de quem com ele (con)vive se altera profundamente, sendo necessário manter um tratamento farmacológico cri-te-ri-o-so e terapia de proximidade; raramente se recorre à electroconvulsivoterapia.


   Não faremos, por agora, o enfoque etiológico desta perturbação, mas, ainda assim, apontaremos para causas transgeracionais de ordem genética e biológica, e para o ambiente familiar onde grassa a violência doméstica, a frieza emocional e afectiva, a crueldade mental, o sadismo e a asfixia relacional; tudo isto, afinal, passível de induzir insuportáveis stresses.
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